domingo, setembro 28, 2003

Confesso que sempre preferi o silêncio à voz, qualquer voz, especialmente a minha. O silêncio é sábio e não fala asneiras, caráter que não pode ser atribuído às vozes em geral, e à minha em particular. Então, quando ela fixou seus olhos em mim e exigiu a minha voz, eu a odiei por todos os crimes cometidos no mundo naquele segundo. Eu sou péssimo em ódios, sinto vergonha de descobri-los rondando minhas intenções, mas humano que sou também odeio. Assim como amo, odeio.

Permaneci calado, não por medo, não por ódio, não por implicância infantil. Não tencionava mais falar e nada possuía ali a ser dito. Há momentos que esgotam a palavra, seja qual for a palavra. Limites. Havíamos chegado ao nosso extremo, o que anglófinos mais posudos e empetecados chamariam de point of no return. Nossos olhos se odiaram com amor naquele instante, e foi quase como a nossa primeira noite (que aliás se deu numa tarde, escondidos do mundo e suas horas, num quartinho de fundos sob parca iluminação e suspiros e orgasmos contidos). Eu te odeio. As palavras ricochetearam pela sala, o limite havia sido superado, agora era esperar pela colisão em andamento.

Não estávamos mais no amor, eu havia declarado o ódio. Pessoas morrem por conta desta bobagem, o ódio, e eu não conseguira evitá-lo mesmo assim. Brancos ainda queimam negros por conta desta bobagem, fiéis de facções rivais travam batalhas campais em memória ao ódio e até publicitários brasileiros e argentinos lucram algum tostão alimentando pequenos ódios internacionais. Quer ser alguém original? Então ame, e não odeie. Lennon foi alguém original. Gandhi foi alguém original. Eu não estava sendo. Ela continuou com os olhos em mim, mas já dava para sentir a diferença. O que eu respirava agora era também medo, o filho primogênito do ódio. Ela poderia tentar nos salvar daquele abismo, ela ainda poderia amar, o meu ódio seria ridículo, eu seria ridículo e deveria pedir desculpas. Desculpas pela minha ignorância, pela minha impaciência, por mim, pelo tempo que ela havia perdido em mim. Eu não seria perdoado, não queria e nem precisava de perdão, mas também estava um tanto quanto adentrado na etiqueta do mundo, onde se pede perdão por certos erros imperdoáveis.

Mas só um cego seria incapaz de perceber que ela não me amava, não mais, talvez nunca mais. Medo. Tensão. Punhos cerrados. Desculpa, não queria te dizer isso. Merda. Faz-se merda com mais facilidade do que se imagina nessa vida. Ah, por que deixei o meu silêncio tomar voz? Pior do que pedir desculpas, é pedir desculpas antecipadamente. Os olhos cada vez mais ferinos dela perceberam o vacilo de minhas desculpas gagas, e dominaram a situação. Eu era um homem perdido. Havia conduzido nós dois ao limite, havia transpassado o nosso limite e agora tentara covardemente voltar, mas a vida apenas segue, quem volta é o verbo. Pior, abdicara do meu silêncio, da única fortaleza que realmente poderia me abrigar. Agora, estava nu. E ela, com todas as armas na mão. Eu estava pondo tudo a perder, inclusive a minha dignidade, quase intacta até então. O que viria após minha atuação era a física, a toda ação corresponde uma reação, em igual sentido e direção oposta.

Seus olhos baixaram, as paredes da sala ficaram brevemente cinzas, o dia lá fora continuava azul. O silêncio dela vencia a cada segundo a minha respiração. E ela não me disse mais uma palavra. Apenas me dirigiu um último olhar enquanto abria a porta. Ligou a tevê e acomodou-se numa poltrona da sala, agora mais anil e sonora. Provavelmente não me viu partir, à procura de meu silêncio e de minhas palavras, que jaziam longe.

sexta-feira, setembro 26, 2003

A cidade e a cilada de Júlio Sarmento (parte 6)

(continuação do dia 23 de setembro de 2003)

A música acabou e Bia ficou parada me encarando. Provavelmente ela estava pensando o quão boba havia sido em ficar dançando ali na frente de um desconhecido - que a amava, sim, mas ainda um desconhecido. Passara a pensar, minha Bia, que eu iria rir, gargalhar, fazer pouco caso de sua dança. Com certeza estava envergonhada e achava que tinha sido sapeca demais e que eu, cinco anos mais velho, não havia gostado de tanta meninice.

- Por que você também não dançou?

Ah, Bia, como você partiu meu coração com esta pergunta. Sua voz mal foi projetada para fora da boca, tinha um ou dois tons mais baixo. Sua sobrancelha se inclinou, uma tentou ir de encontro a outra. E você fez um bico de tristeza com a boca, sua linda boca que eu queria beijar, não decepcionar. Desculpe-me, não era minha intenção magoá-la. Júlio Sarmento a ama demais para lhe causar qualquer mínima dor. Não foi de propósito, Bia, eu juro!

- É que eu não sei dançar.

Droga, Júlio, não bastariam todas as besteiras já ditas naquele dia, você ainda tinha que soltar mais uma. Nem uma palavra bonita, nada para confortá-la, apenas uma seca negação de perícia na dança. E ainda mentira, seu idiota. Eu era um exímio dançarino, assim como fora minha avó, professora de tango por 30 anos numa famosa academia de Botafogo. Como eu me odiava quando meu machismo simplesmente me impedia de dizer coisas bonitas. E ainda havia o álcool que circulava pelos meus vasos sanguíneos, principalmente os da cabeça.

Bia saiu de minha frente, desvirou um dos pés do tênis preto que caíra de cabeça para baixo, e trocou o cd. Colocou Cartola. Abriu o armário e pegou uma bonitinha lata. Era decorada na forma de um prédio de tijolos verdes com várias janelas rodopiando o primeiro andar e uma loja no térreo: the sweet & candy shop. Tinham até duas crianças vestindo roupas de adultos e olhando para a vitrine. E a tampa da lata era o telhado do prédio.

- Você fuma, né?

É óbvio que eu não fumo, Bia. Cigarro faz mal à saúde, meu tio morreu de câncer no pulmão aos 46 anos e eu não seria tolo para virar fumante com esse exemplo de desgraça na família.

- Não, mas você havia me dito que também não fumava...

Bia abriu a lata e tirou de dentro um saquinho com erva. Era maconha. Minha Bia realmente não fumava alcatrão, nem nicotina. Ao invés disso, fumava maconha, a erva de Satã, uma ilegalidade. Ah Deus, o que eu deveria fazer a partir de então que eu descobrira que a mulher, a menina, a minha menina, a mais encantadora que eu já havia conhecido era uma maconheira? Fumar maconha, sem chance de apelação, era um pecado mortal. E dos mais graves, com certeza. Nunca, Júlio, nuca use qualquer substância que faça com que você perca sua razão, nunca use nada que domine suas ações. Ah, D. Tadeu, eu já me comportava como um alcoólatra em certas noites depressivas e naquela me vi diante de maconha, me vi tentado por um dos piores pecados mortais pelos quais o senhor me alertava.

Meu coração, acelerado por paixão, aumentou ainda mais o ritmo pelo nervosismo. Ao mesmo tempo, ela, a Bia, tranquilamente espalhava a erva por uma tira de papel fina, esticada em cima da cama. Enrolou, então, o papel em torno da erva, passou a língua numa das laterais e juntou os dois lados. Usou um prendedor de cabelo para pressionar a erva para um dos cantos, com cuidado para não deixar cair, e amaçou com seus lindos dedinhos, o indicador e o polegar, o outro canto. Ali estava um cigarro de maconha. Para mim, aquele processo durara intermináveis segundos, mais até do que o infinito momento em que eu a vi, a Bia, pela primeira vez na porta do cortiço. Eu estava agoniado.

Ela simplesmente pegou uma caixa de fósforos no criado-mudo, sentou-se na cama e acendeu o cigarro de maconha. Aspirou fundo a fumaça e fechou levemente os olhos enquanto aspirava. Mas não eram mais aqueles olhos cerrados pela composição das bochechas e do sorriso que tanto me agradavam. Ainda eram claros, sim, os olhos, mas não eram tão apaixonantes como antes. Só que ela ainda era a Bia, a minha Bia.

- Sua vez. Você quer?

(continua em breve)

segunda-feira, setembro 22, 2003

A cidade e a cilada de Júlio Sarmento (parte 5)

(continuação do dia 16 de setembro de 2003)

No percurso entre a entrada do cortiço e a porta do quarto de Bia, em nenhum momento minha razão concordou em estar ali. Neste sentido eu não vacilei, tinha consciência do erro que poderia cometer. Mas o suposto erro era Bia, minha mais intensa paixão. Não havia razão que pudesse combater minha paixão. Foi ela, a paixão avassaladora pela qual fui acometido, que permitiu que Bia me conduzisse a seu quarto sem protestos.

À frente daquela porta eu não ouvia mais a chuva. Talvez tivesse parado, ou talvez estivéssemos separados do exterior por paredes bem espessas. Ou talvez, e é nesta possibilidade que mais tenho facilidade em acreditar, meu coração estivesse ressoando tão alto e forte que eu não poderia mais ouvir os sons da rua.

A porta se abriu, Bia a abriu e me convidou a entrar. Entre, Júlio, venha para meus braços, Júlio, afogue-se em pecado comigo neste quarto escuro, Júlio. Como eu gostaria, naquele momento ébrio, de voltar a escutar minha razão, ao invés de seguir as sugestões de Satã. Ah, Júlio Sarmento, um dia você foi católico e aprendeu que os ardis de Satã são imprevisíveis e tanto podem aparecer sob a forma de um saboroso rabo-de-galo, quanto a de uma bela ninfeta de 19 anos com aqueles olhos claros.

- Vem, entra.

Toda minha vida estava sendo posta a prova. Beatriz Carvalho era meu maior acerto, a mulher com a qual eu passara a eternidade sonhando, a mulher com quem eu me casaria e teria dúzias de filhos. Ao mesmo tempo, ela, a Bia, era minha tentação, era o mal personificado querendo que eu cometesse erros já cometidos um dia, mas sempre com arrependimento. Seria um erro encaminhar nossa relação a sexo em tão pouco tempo, sem termos intimidade, sem nem ao menos eu conhecer sua família. Mas era Bia que me convidava, intimava, induzia, a entrar em seu quarto. Era meu acerto que me tentava ao erro. Sua genialidade, Júlio, tão auto-enaltecida perante os amigos, teria que funcionar naqueles instantes que estavam por vir. Como acertar pelo caminho do erro?

Imaginei a infantil situação do diabinho e do anjinho, um em cada um de meus ombros, defendendo seu ponto de vista. Em outros tempos, eu não levaria mais de dois segundos para me decidir por seguir os conselhos do anjinho. Mas eu havia crescido e nem sempre me importava com algumas atitudes, apesar de ter consciência de um valor equivocado - não o mesmo de minha adolescência, não tão cristão como deveria ser. Eu era um hipócrita, um hipócrita nojento que não conseguia assumir seus atos, nem agir conforme seus pensamentos. Júlio Sarmento, o hipócrita.

Entrei no quarto com um aperto no coração, sem a certeza de ter sido causado por arrependimento ou por paixão. Eu mal conseguia respirar. Ela acendeu a lâmpada fluorescente e meus olhos, acostumados naquela noite ao frio e à escuridão, irritaram-se levemente.

O quarto era o mais simples possível, com uma cama, um criado-mudo, um armário, um espelho de corpo inteiro, um aparelho de som no chão e o banheiro. Havia também uma janela com vista para os fundos mas, mesmo se eu quisesse e se a cortina estivesse aberta, estava muito escuro e chovia muito para eu conhecer a paisagem da janela de minha Bia. Sim, dentro do quarto eu voltei a ouvir o barulho da chuva, apesar de não ter me fixado muito nisso. Bia pegou um cd no armário e colocou para tocar. Ela acompanhou Elis Regina, com um olhar sapeca especialmente nos primeiros versos.

- Se você pretende saber quem eu sou, eu posso lhe dizer. Entre no meu carro e na estrada de Santos você vai me conhecer. Vai me conhecer.

Neste momento, neste dia chuvoso de agosto, num cortiço no bairro da Lapa, Beatriz Carvalho começou a balançar os ombros e quadris enquanto cantava. Sua voz era suave, baixa e adocicada. Seu nariz estava lá exatamente como eu o conhecera, empinado. E seus olhos, meio sumidos com um terno sorriso, continuavam sendo aqueles olhos. Ela tirou o tênis preto, em pé mesmo, ainda balançando o corpo, e jogou num canto. Ficaram meias brancas, lisas, protegendo seus dedinhos que eu tanto gostaria de beijar. Não foi muito tempo, mas também não foi pouco, entre os três minutos e quarenta e um segundos de duração da música, para ela tirar também as meias, também em pé, ainda balançando. Eram pés lindos, pequeninos, 36, com as unhas bem cuidadas e sem esmalte. Eram pés de porquinho, os de minha Bia. Não sei explicar, talvez fosse o contorno sedoso e as dobrinhas formadas quando em movimento que me faziam associar os pés de Bia aos de um porquinho. E como eu queria beijá-los.

Desculpe-me cara Elis, mas Bia só andara sozinha e se sentira muito só. No passado, no passado. A partir daquele dia, eu, Júlio Sarmento, acompanharia Beatriz Carvalho. Ela tinha os pés descalços para mim, confiava em mim para dispensar seu tênis e sua meia.

(continua em breve)

terça-feira, setembro 16, 2003

Olhou bem a lâmina já gasta pelo tempo. Pregou os olhos nela tentando adivinhar se aquele pedaço afiado de metal teria coragem o suficiente para lhe desfiar a derme e pôr um fim àquela agonia em que mergulhara havia já quase trinta anos, desde que Dona Sônia presenteara o mundo com mais um menino. Batizaram-lhe Alfredo em homenagem ao avô, pai de seu pai, Alfredo igualmente. Certas coisas nunca mudam na vida.

A navalha não inspirava grandes atos nem dramas pasquins. Mal serviria para o seu devido fim, o ato de barbear. Alfredo, como o avô que carregava na identidade, odiava ter que fazer a barba, e seus pêlos assim exigiam em nome da higiene e da sociabilidade desde seus parcos dezesseis anos. E agora mirava fixamente o cabo vermelho quase alaranjado da navalha na esperança de que um meteoro alcançasse o número 143 da Rua Presidente Roosevelt, no bairro do Grajaú, na Tijuca, Rio de Janeiro, Brasil e liquidasse com ele, a lâmina vacilante e a angústia que tornava o ar em torno de Alfredo irrespirável.

Trancara-se dentro de casa na semana anterior. Era um homem silencioso, como um bom Alfredo deve ser. Morava sozinho e não fazia questão de ter muitos amigos, aliás, duvidava ele mesmo ser capaz de ser amigo de alguém. Outros Alfredos teriam bons amigos para um futebol, uma noitada ou apenas umas cervejas após o expediente, mas este Alfredo era singular. Ao olhar para os homens e suas barbas por fazer, cobiçava-os. O pai notou-lhe esta característica quando, ele ainda mais filho do que Alfredo, andava mais maliciosamente que seus coleguinhas no judô. O tempo encarregou de fazer de Alfredo solitário, o pai reparava que seu filho além de andar com certo molejo (comedido, decerto por medo ou censura prévia) não ligava para meninas marcando um cinema, não tinha um amigo presente, não se entusiamava com os jogos do Fluminense, nem ao menos espiava a empregada Carminha, uma mulata do Andaraí de mistérios e pecados estampados nos quartos famosos em todo o bairro, e Carminha não tinha muitos pudores nem para lavar a louça.

Quando o filho já terminando o ginásio, ainda solitário, passou a chegar em casa com a roupa do colégio suja e alguns hematomas no corpo o pai resolveu inquirir o por que daquilo. A mãe, que apenas amava demais os dois Alfredos e tentava não sucumbir à pneumonia que importunava seu tabagismo, aconselhou ao pai que não abusasse, como mãe já sabia que seu filho não era Alfredo como o pai, mas era igualmente Alfredo e cada um pode ser Alfredo do modo que bem entender. O pai não era tão tolerante, e nunca dera ao filho essas idéias de maricas, onde já se viu, filho meu apanhando do filho dos outros no meio da rua? Querem que te digam mulherzinha? Agora Alfredo apanhava na rua e em casa. O pai morreria desgostoso do filho três anos após Alfredo graduar-se em Filosofia. A mãe não conseguiu ver o filho, seu único filho, abraçar a carreira acadêmica, a única coisa no mundo que o faria sorrir além dos quitues que Carminha, já envelhecida tanto quanto a mãe, preparava para ele nos finais de semana.

Preferiu fazer da casa dos pais a sua residência também. Após a morte do pai, Carminha ainda fazia questão de aparecer quinzenalmente não apenas porque sentia-se na obrigação profissional de cuidar daquela casa que também fora um pouco sua por mais de vinte anos, mas especialmente porque aquele Alfredo era um pouco seu também. Poderia não ter sido amante clandestino de suas ancas como o pai, mas sabia lhe fazer sentir-se mulher igualmente por outras formas. Quando não encontrava-se na faculdade pesquisando ou lecionando, trancava-se em casa, absorto em leituras. Nem toda a filosofia do mundo solucionava a angústia de ser surrado costumazmente pelo pai, Alfredo como ele e o avô que nunca pôde conhecer, talvez por não ter querido encurralar Carminha por detrás de portas e despensas.

Tentou análise, prostitutas, clubes de suingue, salas de chat na internet, michês e mesmo bolsistas. Assustava-se com a violência de sua própria excitação, pedia desculpas e isolava-se num canto do cômodo com medo de ferir aquele que poderia ser seu parceiro. Lembrava do pai e chorava de medo. Um dia conheceu Cristina, dez anos mais jovem e que o olhava demais enquanto ele filosofava sobre a poética na Grécia Antiga. Cristina aparentemente era a única coisa que lhe restava para salvar a sua sexualidade perdida, uma mulher, quase uma piada de mau-gosto. Cristina um dia resolveu por bem ou por mal devorar aquele Alfredo que a fazia palpitar e dessa vez, talvez pelas doses de vodka a mais, Alfredo não teve medo do pai, nem de si, nem de nada. A ironia é que Alfredo não sentia o menor desejo por Cristina, porém não conseguia ser aquele homem com os homens que desejava. Ele começou a se desesperar.

Cristina, porém, ignorava que o calado Alfredo não a desejava. Mesmo porque encontravam-se quase toda noite, e Alfredo, ao contrário do que muitos julgavam, sabia ser homem como poucos na hora do vamos ver. Certas coisas nunca mudam na vida dos Alfredos. Então Cristina apercebeu-se que tanto sexo causa filhos. Alfredo desesperado consigo próprio, perdeu o norte, pediu dispensa na faculdade e isolou-se em casa. Agora encarava a lâmina, sua única esperança de vida. Como poderia ele pôr no mundo mais um Alfredo, essa raça que desgraçara a sua vida? Como explicar, e antes de explicar simplesmente dizer para Cristina que não a desejava, nem hoje nem jamais, e que não desejava mulher alguma por sinal? Como amar uma criança que era fruto de seu ódio pela sua impotência, do ódio de seu pai pelo filho maricas, do ódio do mundo pela sua opção sexual? Como poderia ele, sem nortes, ter que nortear um filho na vida? Como poderia amar se apenas havia conhecido rancor e piedade? Empunhou a navalha com firmeza e suspirou decidido. Foi quando um meteoro adentrou no quarto, lhe esbofeteando o rosto e arrancando a navalha das mãos.

Carminha o olhou esbaforida, sem voz, as lágrimas mesclando-se ao suor em sua negra pele e então ele entendeu que a sua vida poderia ser simples. Simples como amar. Precisou chorar muito antes de contar para a mulata que aquele Alfredo, quem diria, seria pai.

segunda-feira, setembro 15, 2003

A cidade e a cilada de Júlio Sarmento (parte 4)

(continuação do dia 12 de setembro de 2003)

Convencido de que poderia estar cometendo o maior erro daquela noite, e talvez até de minha vida, resolvi recusar a proposta de Bia. Não tinha dúvidas de que a amava infinitamente, mas tinha dúvidas se deveríamos nos apressar daquela forma, atrelando o sexo ao primeiro capítulo de uma bela história de amor, oxalá eterna. Talvez fosse culpa de minha criação religiosa, mas eu realmente tinha uma certa repulsa ao ato sexual. Apesar de não admitir, eu achava o sexo nojento.

E era eu mesmo, Júlio, o arrogante metido a intelectual, que não conseguia falar de sexo sem que sua alma ruborizasse. Não precisa ficar com vergonha, menino, imagine que sou sua mãe. Maldita prostituta, maldita Maura que oito anos passados praticamente havia abusado de mim naquele maldito prostíbulo da Praça da Bandeira. Pedia para que eu relaxasse e ia abaixando minha bermuda e minha cueca. Você sabe usar camisinha, menino? Você não sabia usar camisinha, Júlio Sarmento. Você, inocente acólito nas missas dominicais, mal sabia o que era uma camisinha. E você disse isso a ela, a prostituta, a Maura. Não senhora, não conheço exatamente o mecanismo para o melhor funcionamento do preservativo. Nós estávamos no segundo andar, mas sua gargalhada certamente foi ouvida na rua em frente.

Maldito tio que me levou naquele lugar. Dizia que eu tinha que virar homem logo, para não perigar me perder pelo caminho. Mas eu já sou homem, tio, tenho 15 anos, sou Júlio, um homem. Aconteceu em fevereiro, no período do carnaval. Meu tio me levou para dar uma volta, dizendo a minha mãe que iríamos tentar acompanhar os desfiles na Marquês de Sapucaí. Até hoje acredito que meu pai fora cúmplice nos malévolos planos de meu tio. Na quinta-feira seguinte, lá estava eu, enfrentando a triste realidade. Pequei, D. Tadeu, cometi um pecado mortal e preciso do perdão divino para novamente receber a eucaristia. Pequei, D. Tadeu, pequei contra castidade. Solitário como sempre, Júlio? A única pergunta de meu amigo confessor foi minha maior desgraça e minha resposta talvez tenha sido sua maior decepção. Júlio, você virou um homem e agora deve tomar cuidado com as muitas tentações que provocam os adultos. Daí até meu rompimento com a Igreja, nas poucas vezes que precisei confessar o pecado contra castidade acompanhado, procurei outro sacerdote, que não D. Tadeu.

E lá estava eu, bêbado na Lapa, decidido a não me render novamente à tentação dos prazeres da vida. Bia notou meu desconforto e me olhou profundamente com aqueles olhos. Questionavam-me em silêncio. Temi que ela pensasse que minha paixão havia sido movida a álcool e não a verdadeiros sentimentos.

- Que tal se deixarmos para outro dia a visita a seu lar?
- Não.

Como não, Beatriz Carvalho? E foi um não lacônico, sem sorriso, sem mudança de expressão, sem nem uma piscadela de olho. Ela só disse não e mordeu o lábio inferior. Em seguida pegou meu braço com sua linda mãozinha que há pouco eu havia beijado e me puxou para dentro do cortiço. E não, ela não me deu escolha e nem eu fiz lá grandes esforços mentais para me decidir por resistir.

Bia me puxou através da porta e eu me vi subindo as escadas velhas e rangentes do cortiço em seu encalço. A velha na recepção, a dona, a Jana, ainda reclamou de eu estar entrando em seu estabelecimento ensopado daquele jeito. Bia argumentou e pediu carinhosamente que ela cedesse pelo menos daquela vez porque eu era um amigo querido que precisava se abrigar da chuva. Dona Jana me pareceu ser uma boa pessoa. Deixou-nos entrar com um sorriso e com palavras que mostraram uma certa intimidade com minha anfitriã, minha Bia.

A Pensão da Jana só tinha dois andares. A escada para o segundo andar, o do quarto de Bia, ficava bem próxima à porta, à direita da recepção onde estava naquele momento Dona Jana. Não reparei em movimento no corredor do térreo, mas eu poderia estar enganado. No corredor superior não havia, de forma alguma, sinal de movimento. O carpete verde dos corredores tinha um cheiro estranho que me lembrava morfina - mas apenas a palavra, não seu odor, que eu não tinha certeza se conhecia. As paredes eram revestidas de papéis velhos, já rasgados em alguns cantos, e com sinais de mofo por detrás. Eram azulados, bem escuros, com grandes margaridas desenhadas em vários pontos.

O corredor tinha o formato de um "L" e deveria ter uns 25 metros no total. O quarto de Bia, o 205, era o último à direita antes da curva.

(continua em breve)

Bem, ouvindo Babies, do Pulp, e dançando feito um retardado aqui em casa, acabei brigando com o amor de cada um viii. Resolvi dar um novo rumo a história e vou trocar o nome para A cidade e a cilada de Júlio Sarmento.

É provisório.

quinta-feira, setembro 11, 2003

A cidade e a cilada de Júlio Sarmento (parte 3)

(continuação do dia 09 de setembro de 2003)

- Posso lhe dar um abraço?

Pois bem, Júlio, você não estava num dia exatamente inspirado para se apaixonar. Estava bêbado, afinal. Em apenas duas frases ditas para a mulher que mais merecia apostos carinhosos no mundo, eu consegui soltar tolices. Nada de afagos, brincadeiras ou ternuras. Onde foi parar meu bom-humor? Onde estava aquele Júlio de outrora, cheio de si e confiante em seus galanteios? Eu estava certo que não deveria ter sido tão direto.

Ela apenas sorriu com minha pergunta. Foi seu primeiro sorriso, seu primeiro sorriso provocado por Júlio Sarmento. E então meu coração disparou e eu descobri que seus olhos associados àquele sorriso eram ainda mais inigualáveis. As bochechas coraram levemente, formando duas pequenas rugas no contorno da pele, bem abaixo dos olhos. E seu nariz, danado de metido, ficou ainda mais empinado. O resultado foi o surgimento de um esconderijo escuro para os olhos de Bia, seus fascinantes olhos que sabiam o quanto eram queridos e gostavam quando alguém sentia sua ausência. Ali, bem no centro de cada região ocular, só se via um brilho claro a ser perseguido.

Apesar de minha memória ainda fraquejar na recordação do instante exato motivador de minha paixão, lembro que foi o conjunto dos olhos com o sorriso que me fizeram ter certeza.

Ela, a Bia, concedeu-me seu abraço. Não como eu gostaria, apertado e quente, mas mesmo assim satisfiz-me por saber que ainda não tinha colocado tudo a perder com minhas idiotices. Respirei fundo e tentei conter minha excitação. Achei que o melhor seria não pular etapas novamente, e encaminhar nossa prosa para um conhecimento mútuo, extremamente importante para consolidar meus sentimentos e, talvez, provocar nela semelhante reação. Era como eu fazia quando tinha 18 anos e conhecia moças em bares na noite do Rio de Janeiro.

Beatriz Carvalho tinha 19 anos e completaria 20 ainda naquele ano, em outubro. Gostava de cinema, encantava-se com o Woody Allen, lia quadrinhos de super-heróis e sonhava ser o Batman. Garantiu-me que pouco consumia bebida alcoólica, a Bia, e que não fumava. Brincou com meu estado e disse que eu não deveria beber tanto. Ah, Júlio, seu arrogante, você estava tomando lições de uma menina de 19 anos, a única que tinha permissão para lhe dar a lição que quisesse.

Não, Bia, não quero saber o que você faz. Deixe-me continuar imaginando que você é advogada, música, ou uma multimilionária grega viajando pelo mundo. Também não quero saber se você está neste cortiço por falta de opção ou pela mesma curiosidade que me arrastaria para aí caso eu não fosse tão medroso. Deixe-me imaginar, doce Bia, deixe-me conhecê-la aos poucos para que minha paixão não perigue ser esgotada de uma só vez. Sim, eu poderia me iludir, mas a ilusão é real quando não existe realidade. E nossa verdadeira realidade, Bia, era a Lapa, a Joaquim Silva e chuva em frente ao cortiço. Só que, para mim, só eu e você existíamos.

Perguntei se ela queria caminhar um pouco à noite comigo. Ela me olhou com aqueles olhos ímpares e pensou. Eu sabia que este era o momento, o meu momento. Eu não tinha feito mais nada de errado, não havia pulado mais etapas. Eu só quis me manter curioso acerca de sua história, não poderia me negar aquela passeio por este motivo.

- Que tal, Júlio Sarnento, em vez do passeio, não subirmos para meu quarto que está mais quente e seco?

Meu nome é Sarmento, Beatriz Carvalho, Sarmento, não sarnento. Eu odiava quando me chamavam de Júlio, o sarnento, na adolescência. Olhem, vejam, lá vem ele, o sarnento. Malditos garotos que não tinham mais nada para fazer a não ser aporrinhar os outros mais tranquilos.

Ela sorriu com minha reprovação e então reparei que fizera a brincadeira de propósito, a danada. Mas não faça mais isso, Bia, não me chame novamente de sarnento, Bia, não você, não a mulher pela qual eu me apaixonei.

Quanto a sua proposta, eu sei que tentei pular etapas revelando de cara minha paixão, mas será que não estaríamos sendo um pouco precipitados? Tínhamos acabado de nos conhecer e ela já estava me convidando para entrar em seu lar, seu sagrado lar. Mesmo um quarto de cortiço pode ser considerado um lar. Júlio, pense depressa, ela não tem todo o tempo do mundo para esperar por sua decisão. Mas e Deus? O que Deus iria pensar se eu aceitasse?

(continua em breve)

segunda-feira, setembro 08, 2003

A cidade e a cilada de Júlio Sarmento (parte 2)

(continuação do dia 02 de setembro de 2003)

Na Joaquim Silva, mesmo com toda aquela chuva, uns e outros ainda arriscavam uns passos tortos de samba no meio da rua. Bêbados, todos, como eu. Caminhei em direção à escadaria do Convento de Santa Teresa, desviando dos passistas eventuais que imploravam por mais alguns centavos para comprar bebida. Ignorei. Eu mesmo estava quase sem dinheiro e não gostava de colaborar com os vícios alheios.

O que eu mais gostava de fazer na Joaquim Silva era ficar admirando aqueles cortiços velhos. Tinham histórias nunca contadas que me encantavam. Por diversas vezes eu pensei em passar uma noite ali, mas nunca me motivei verdadeiramente. Acho que meu problema era medo mesmo. Eu ficava divagando que poderia acontecer uma daquelas brigas de casais, que deixam mortos. Durante a noite, uma sirene acordaria todo o cortiço, o rabecão viria buscar o cadáver e o João do Rio seria o único capaz de descrever a cena com o charme necessário que um crime num cortiço da Lapa exige. Só que o João do Rio já deveria ter morrido há muito tempo e um crime num cortiço da Lapa envolve todo mundo, até mesmo os turistas acidentais que só estão ali para curtir uma única noite.

E foi saindo de um desses cortiços que inspiravam meus sonhos rebeldes que a vi pela primeira vez. A chuva, a bebedeira e a Joaquim Silva não estavam mais ali. Éramos apenas o Júlio, o cortiço e a Bia. Sim, Bia era o nome da moça que descia pelas escadas da Pensão da Jana. Ela vestia uma calça jeans velha e apertada, tênis preto surrado 36 e um casaco bege de microfibra. Mais tarde eu descobriria que ela não usava sutien. Seus cabelos eram castanhos, curtíssimos, e seu pequeno nariz era empinado. Ah, e como eu adorava narizes empinados! Ela não me parecia ter mais de 1,70m, mas nunca fui bom em calcular alturas. Seus olhos claros iluminavam a noite e penetravam no meu inconsciente. Hoje, depois de tanto tempo, Bia não passa de um borrão em minha lembrança, a não ser por aqueles olhos. Provocaram-me danos irreversíveis, seus olhos.

Não consigo dizer exatamente em que momento eu me apaixonei por Bia. Sei que foi naquele período em que restaram no mundo apenas eu, ela e o cortiço. Se ela tivesse sorrido, eu teria certeza do motivo, mas ela não sorriu. Bocejava apenas enquanto descia as escadas, a Bia. Ah, Júlio, não vá se meter novamente com uma mulher, lembre-se do que aconteceu com a última, seu bêbado.

Bia deveria ser garçonete de um restaurante japonês. Ficaria linda de quimono, rosto repleto de base branca e lábios vermelhos. Ou talvez ela fosse aeromoça, de terninho, salto alto e broche da companhia aérea, perguntando aos passageiros se queriam chá ou café. Ou então Bia poderia ser uma estudante de sociologia vinda do interior, que morava num cortiço da Lapa por não ter família em nossa grande metrópole.

- Oi, eu me chamo Júlio, Júlio Sarmento, e estou apaixonado por você.

Ah, maldito Júlio, o que a bebida o fez fazer? Eu poderia ter pensado em alguma forma mais inteligente de me apresentar a Bia, mas não, eu deixei o resquício do expelido rabo-de-galo dominar minha mente e me declarei como uma colegial tola a seu primeiro namorado. A bebida é uma porta aberta ao demônio, Júlio, não abra portas ao demônio. Eu sei, eu sei, D. Tadeu, estou arrependido de ter bebido tanto e agora esta estupidez que disse a Bia não passou de minha penitência.

Ela me olhou profundamente com aqueles olhos de difícil descrição e por dias não disse nada sobre minha paixão. Estendeu sua mão para que eu a beijasse, deu um passo adiante deixando a proteção do pequeno toldo acima da porta do cortiço e se expôs à chuva.

- Seu bobo. Meu nome é Beatriz Carvalho.

Eu beijei sua mão com a ponta dos lábios, fazendo bico com a boca e fechando os olhos. A chuva caía forte, mas não havia chuva. Nem bebedeira, nem Joaquim Silva, nem Lapa, nem cortiço e nem mesmo Bia. Júlio Sarmento estava beijando aquela mão, a mais doce mão que ele jamais beijara antes, a suave mão de sua Bia. E o que eu mais desejava era que aquele inocente beijo durasse para sempre. Mas sempre, Júlio, sempre é tempo demais.

(continua em breve)

quarta-feira, setembro 03, 2003

O vôo havia transcorrido na maior das tranqüilidades, ela relaxava ao ombro dele feliz por estar nas nuvens. Chegariam de volta à terra que ele preferia em breve, talvez meia hora no máximo. Ela inocentemente roçava seus dedos por sobre o volume tenso que pulsava denro das calças dele. Ele estava lendo um livro, mas a cada palavra os dedos inocentes ficavam mais interessantes que a vida boêmia do famoso jogador de futebol biografado e logo precisou levantar-se para ir ao banheiro. Não havia filas, ele entrou.

Após algum trabalho tentando urinar as quatro doses de uísques paraguaios ingeridos durante o vôo estando em alerta, lavou o rosto, pensou nas criancinhas passando fome na África e aliviou a ereção. Ao abrir a porta do banheiro não pôde sair; um desejo furioso o empurrou de volta e o sentou na privada, ao mesmo tempo em que trancava a portinhola. Seus dedos já não queriam mais a inocência, e levantaram a saia. Ele abriu a braguilha, desceu as calças e empurrou a calcinha dela para o lado. Ela se estacionou nele, e afundou naquele homem tentando absorvê-lo inteiro mordendo suas orelhas, mastigando seus beijos e sugando a sua respiração. Filho da puta, achou que podia me deixar com tesão pra nada? Arrancou um pedaço do lábio inferior dele que sangrava e ardia e o fez marcar sua mão na coxa direita dela.

As aeromoças informavam os passageiros que o vôo estava adentrando numa pequena turbulência, que todos afivelassem seus cintos e mantivessem a calma, o mais importante era relaxar e começou a passar no telão um filme da Disney do Fusca falante. Ele a esbofeteou na cara e cuspiu na boca que beijaria logo em seguida, ela começou a cavalgar pra valer, se agarrando naqueles braços que ela delirava só de pensar que se fletiam e suavam masturbando aquele pau que a comia sonhando que a fodia das formas mais sujas possíveis. Você gosta disso, né, cachorra? Ele desabotoou a camisa dela e mergulhou naqueles peitos maduros que cheiravam sempre bem e mordiscou aquelas duas peras, arrancando pequenos nacos, sugando todo o seu sumo. Ele bombeava com força para dentro dela, que segurava os gritos dentro de si, o tsunami que varria a sua buceta cujo cheiro já invadia os corredores da aeronave onde alguns passageiros já começavam a acreditar no medo que sentiam pelas nuvens escuras que envolviam as suas janelas. Na primeira classe, um famoso senador dava pitis dizendo que não poderia morrer ali, não agora, não sem Jorge por perto para o acalmar e retirava do bolso do paletó um saquinho onde cheirava a cocaína que o enriquecia e pagava as faculdades de seus três filhos. As crianças se entretinham com o Fusca rodopiando. Alguns pais já tinham crises de asma.

Ela cravou os coturnos no chão, o dedo dele roçando em seu ânus, suas nádegas sendo apertadas com ferocidade, ela tatuou seus gritos nas costas dele a unha e sangue. Era difícil respirar, era complicado existir sem gritar. Cachorra. Filho da puta. Mais tapas, mordidas e então ela já não acreditava mais em nada, nem em Deus, nem no inferno, nem no cheiro da buceta dela que açoitava as nuvens lá fora. Seus olhos não viam, sua boca não falava e então ele num último suspiro a encheu de porra. Uma porra amarelada, espessa que saiu dele durante três longas bafejadas. O avião trovejava, tremia e ele a engolia. A última gozada lhe doeu os rins, pois que não tinha mais nada para sair dele, só os suspiros.

Morreram assim, amantes, de olhos fechados, suados e feridos dez minutos depois.

segunda-feira, setembro 01, 2003

A cidade e a cilada de Júlio Sarmento (parte 1)

Depois de até ter perdido a conta do tempo que não me encontrava com uma mulher na cama, naquele fim de agosto quase aconteceu. A noite do Rio de Janeiro às vezes gratifica com boas surpresas aqueles que lhe fazem companhia em sua solidão. Era sábado e fiquei caminhando pelas ruas desertas da Lapa. Chovia, Deus, e como chovia! A Mem de Sá estava ligeiramente alagada e eu não tinha levado minhas galochas. Só que eu não era mais criança para ficar me preocupando em molhar os pés. Tinha 24 anos, chamava-me Júlio Sarmento e era um adulto. Júlio, você não é mais criança, pode pegar chuva sem o perigo de tomar uma surra de sua mãe quando voltar para casa. Mas meu tênis vermelho ficou ensopado.

A Mem de Sá deve ter sido obra do Pereira Passos, quase todas as obras antigas da cidade foram realizadas pelo Pereira Passos. Mas não os Arcos da Lapa. Antigo aqueduto, os 42 arcos de alvenaria foram construídos no século XVIII. Ligam o morro de Santo Antônio ao bairro de Santa Teresa.

Uma vez eu andei pelos arcos a pé. Parei meu carro ali perto do Largo das Neves e esperei passar um bonde. Fiquei uns bons minutos contando o tempo entre um bonde e outro e espreitando os policiais que guardavam a passagem. Como eu era esperto, era Júlio Sarmento, o esperto! Os guardas se distraíram, tinham que se distrair com a mulata que passou agarrada ao bonde, e eu corri. Devo ter conseguido chegar até o vigésimo arco antes do policial barrigudo me ver e gritar. Fiquei com medo e voltei. Ameaçaram-me de prisão, os malditos guardas, mas me liberaram por uma nota de dez. Uma pechincha, isso que foi, pagar 10 reais para andar por cima de 20 arcos. Júlio Sarmento, o esperto.

Eu já estava de porre com as dúzias de cervejas tomadas na Rua Joaquim Silva. Chovia, sim, mas sempre há ambulantes vendendo cerveja na Lapa. Tomei também um rabo-de-galo num botequim qualquer para espantar o frio. Deus, até hoje lembro do sabor quente daquele rabo-de-galo. Foi o melhor da minha vida, o único que não teve gosto de remédio. Passei minha juventude tomando rabos-de-galo num boteco sujo nos intervalos de minhas aulas no São Bento. Eu queria ser contraventor. Usava uma calça cinza e uma blusa azul, ia à missa aos domingos, estudava num colégio católico onde só havia meninos, assistia às aulas calado e queria ser contraventor. Durante o recreio eu ia direto para a Praça Mauá, no chamado Boteco da Praça, o mais sujo, o mais fedorento, e pedia um rabo-de-galo. Quantos anos você tem? Júlio Sarmento tem 18 anos, lógico. E o velho turco me servia. Tomava só um, mas já era um contraventor. Eu, Júlio, menor de idade, o contraventor.

Depois arrependia-me, sempre, de ter tomado o rabo-de-galo. O que você fez desta vez, Júlio? Pequei, D. Tadeu, cometi um pecado imperdoável, estou arrependido, espero que não tenha sido um pecado mortal, D. Tadeu, quero me confessar, imploro pelo perdão de Deus, D. Tadeu. Júlio, eu te absolvo de seus pecados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Mas isto acontecia na minha infância quando eu ainda tinha fé. Eu sei, eu sei que às vezes minha fé voltava para questionar minhas atitudes, mas não naquele sábado. Não por aquele saboroso rabo-de-galo.

Desci completamente alcoolizado da Joaquim Silva em direção ao Largo da Lapa e os arcos naquele ponto, encostado aos muros da Fundação São Martinho, tinham um cheiro enjoativo de mijo e fezes da população de rua. Nem a chuva amenizava o cheiro. E como chovia. Meu estômago embrulhou, sentei na sarjeta próxima àquele fedor e vomitei o rabo-de-galo e as cervejas num bueiro qualquer. Um perdedor, Júlio, você era Júlio Sarmento, um perdedor. Seria mais um típico dia de perdedor, aquele sábado.

Minha boca fedia a vômito e eu comprei outra cerveja numa barraquinha de cachorro-quente em frente à casa do Tá na Rua. Comi observando a molecada no Largo da Lapa cantando, gritando, brincando, rindo na chuva. Eram jovens sem um lar. Nesta hora eu enxerguei que a lembrança de minhas galochas havia sido especialmente cruel. Eles eram crianças brincando na chuva descalços, sem lares e sem casacos, e eu me preocupava com meu tênis vermelho ensopado. Senti-me péssimo, como se tivesse cometido um pecado mortal. Rezei a oração mais difícil que sabia em latim, Salve Rainha. Salve Regina, mater misericordiae; vita, dulcedo et spes nostra, salve. Eu tinha que me redimir daquele pecado mortal. Eu não era mau, tinha perdido a fé de minha juventude, mas não era mau.

Quis sair dali em direção ao Capela, mas a Mem de Sá continuava ligeiramente alagada. E, mesmo não me importando mais em molhar os pés e pegar um resfriado, eu ainda podia tomar um choque com alguma fiação subterrânea revolta naquela chuva. Achei melhor não arriscar e voltei para a Joaquim Silva, mas desta vez evitei passar pelo fedor dos arcos e subi pela Travessa do Mosqueira.

continua em breve...

Pois é, meu caro Andy, acompanho o blog e tento manter nossos ávidos leitores também através da minha prosa, que rende bem menos ibope que a sua aliás. Trepadas à parte, e ao que tudo indica, eu trepo muito bem, obrigado, é interessante essa coisa dos comentários de blog. Meio que abre um espaço para que terceiros (aqui, literalmente) metam seus respectivos bedelhos em nossas palavras nunca acima de críticas. Veja só, o blog, essa coisa de adolescentes sem namorados e afins, transforma-se em um espaço democrático pra caralho de discussão e putaria virtual. O sujeito pode entrar na nossa página, ler o conteúdo dela e deixar o seu registro também. Registro esse que também pode servir de estopim para outras discussões, idéias e textos e assim ajudamos a humanidade a caminhar.

Quanto ao tempo da internet, ele é reflexo da nossa falta de tempo para fazer qualquer coisa mais prazerosa e que exija um mínimo de atenção. Pra que ir ao Maracanã se o jogo passa na Globo com replay e o Galvão falando bobagens o tempo todo? Pra que procurar uma mulher se as fotos da Dóris (bundinha redonda, mas decepcionante no geral) encontram-se disponíveis pra quem souber usar o Google? Os tais flash mobs, cujo nome deve derivar de flash mobilizations, ou rápidas mobilizações, na verdade pouca coisa têm de novidade. A novidade é que o encontro físico é combinado previamente via computadores, o que não é tão novo assim. As pessoas se encontram num mesmo lugar com um objetivo comum há alguns séculos. Mas lógico que seria bacana que esses garotos que cresceram achando que o Nirvana inventou o rock (e alguns sabem que não, na verdade foi o Greenday quem começou com tudo isso) e agora devem achar que aquilo que o Linkin Park produz tem mais valor que suas excreções pudessem aproveitar essa onda de mobilizações com objetivos práticos para algo melhor do que brincar de "Vivo ou Morto" numa loja da Vivo. Que pelo menos fizessem uma suruba no Palácio Laranjeiras para deixarem claro que está foda ser governado por uma garotinha. Mas, enfim, parece mais uma daquelas coisas que ganharão espaço na mídia, piadas repetidas do Casseta & Planeta, servirá de gancho para algo idiota na novela do Manoel Carlos e talvez até vire mais uma pegadinha da Rede TV!, mas que, como os blogs, o ICQ e o heterossexualismo, um dia será apenas memória. Aí temos os fotologs, o Messenger e a Madonna trocando saliva em público com a Britney que não me deixam mentir.

Quanto à sua idéia de realizar um flash mob em prol de um sexozinho bom entre o senhor e a Luma de Oliveira, acho bastante aprazível. Mantenha-me informado.