domingo, outubro 30, 2005

Um texto ruim

Em hipótese alguma deve-se menosprezar o sofrimento de alguém que te ama. Eu talvez já tenha feito isso e me arrependo absurdamente. Um filósofo disse certa vez que nossas tristezas, as tristezas humanas, são certezas, enquanto que as felicidades são meras possibilidades. A explicação tem alguma coisa a ver com a intensidade dos sentimentos, mas não quero perder muitas linhas com isso. Sabido o básico, portanto, seguimos, todos nós, em frente.

Vale lembrar que eu já chorei tanto de felicidade, quanto de tristeza. E foi choro mesmo, com lágrimas caindo dos dois olhos. Se eu, um alcoólatra incorrigível descrente com a humanidade, fui capaz, qualquer um pode. Experimentem que eu garanto que faz bem. No meu caso, foram raros os momentos.

Houve uma época da minha vida em que eu me apaixonava todas as semanas. Na maioria das vezes por pessoas diferentes. Raramente fui correspondido porque minha arrogância assustava os outros.

Ao mesmo tempo, era comum que mulheres demostrassem algum interesse em mim. Não entendo os motivos, mas o carro, o Amex e a tal arrogância podem indicar um caminho para este enigma. Em outros tempos, cravaria como resposta minha aparência e capacidade sexual. Mas a idade trouxe humildade e eu nunca fui tão inseguro como hoje para laurear qualquer qualidade deste tipo. Ainda mais duas inexistentes.

Minha arrogância nos dois casos - repulsa quando apaixonado e atração quando desinteressado - me fez parecer um completo idiota durante um bom tempo. Tão estúpido que fui capaz de dizer para um garçom que não gostaria de conhecer uma menina interessada em mim porque naquela noite gostaria de ficar sozinho. Menti porque queria cultivar aparências.

Numa das últimas vezes que me apaixonei fiquei tanto tempo esperando um sinal, sem querer me revelar por pura arrogância, que perdi as duas únicas oportunidades que tive. E o sinal, este nunca veio e nunca virá. Mas o tempo pode mudar isso, lógico.

Houve um dia, apenas um dia, em que eu pensei que poderia ter feito as coisas certas. Desisti, deixei a estrada de tijolos amarelos e me aventurei pela selva numa metáfora horrenda. Fato é que gostaria de escrever coisas mais divertidas, mas a tristeza é uma certeza. Novamente, o tempo.

Antes de terminar, devo escrever que a frase lá em cima atribuída a um filósofo é minha mesmo. Criei o personagem só para dar mais credibilidade. Afinal, é tudo ficção, não tem jeito.

segunda-feira, outubro 24, 2005

VI

Nada é tão cínico e canalha quanto um homem apaixonado.

Rigorosamente nada. Hitler justificando o extermínio dos gentios e McCarthy torturando criancinhas negras passíveis do comunismo carrasco da pax americana perdem. Perdem feio. Eles negam seus vícios, mas a culpa lhes toma o lugar da sombra. As fotos em periódicos e as falas em ondas de rádio e televisão denunciam que mentem, ou ao menos deliram. Homens apaixonados são capazes de pão com ovo no café da manhã acompanhado de guaraná antártica sem gás com vodka diluída. Hitler não bebia. Eu tomava porres há pelo menos uma década e nem tinha chegado aos trinta ainda.

E estava apaixonado por Luana. Luana eu não sei, ela era bem malandra para seus bem vividos vinte anos. Vinte e um, para ser exato. Me beijava na hora do gozo, me fazia cafuné enquanto eu suspirava para morrer ao seu lado e me cobrava a mensalidade da ginástica que eu havia prometido. No final do dia ela invadiria minha existência outra vez, ligaria a televisão na novela, atacaria minha despensa de homem solteiro - comida industrial semi-pronta, sucos em caixa, maionese, pão, frutas e verduras de validade questionável - e me cobriria de beijos e amor e paz.

E eu me apaixonaria por cada nuance, cada vírgula, cada erro de sintaxe. Os peitos de auréola quase rosa, o bumbum suculento e bronzeado, os pelinhos com blondor no cóccix. Era a minha sina com ela, morrer de amor. Clichê barato de literatura do século XVIII para vocês, para mim o respiro de cada manhã e o desassossego de cada noite. Então, eu mentia compulsivamente chegando a enojar a mim mesmo quando me ouvia, queria me esganar, me mergulhar no fundo do Guamá com cimento nos pés, arrancar fora a minha língua, etc. Eu era um nojo, Luana merecia coisa melhor.

Ela, sentada quase deitada a conversar comigo, que lia um livro, de noite, televisão ligada no programa da Luciana Gimenez, ou do João Kléber, ou do João Gordo. Beliscava minha barriga e sorria, criança. Eu sorria, maroto. Ela perguntou, menina-mulher, o que eu faria se ela estivesse grávida, olhos nos olhos, aqueles momentos em que uma mulher não pode te ver peidar na farofa, aquele timing que pode tornar você - aos olhos dela, mané - homem feito ou menino descartável. Olhei sério, fechando o livro, claro que eu iria assumir, minha linda. Como não? (Tudo mentira, eu no mínimo, daria um jeito de fugir para o estrangeiro.) Ela não dá o braço a torcer, "Você não iria querer que eu tirasse?" Era óbvio que sim, eu não era de Belém, não pretendia morrer ali, nem ao menos tinha nascido ali, não queria um filho ali, nem mesmo com ela porque não queria filhos com ninguém tão cedo em lugar algum, vade retro, sai, passa! Lu, eu respondi de bate-pronto, eu jamais vou te pedir algo assim, eu nem tenho idéia do quanto deve ser ruim tirar um filho. Ela acariciava a própria barriga, eu pensava no estoque de camisinhas que tinha guardado no criado-mudo.

Aí ela confessou que já havia abortado, ela era muito nova, o namorado então não deveria ser muito paternal a seus olhos. Descobriu porque tinha desejos de tomar sorvete de três a cinco vezes ao dia. A tabela um belo dia falhou. O sorvete voltou regurgitado, a menstruação atrasada, os quatro testes de farmácia azularam. Estava grávida e não queria estar. O médico que fez a ultra-sonografia fez o preço. Era algo muito desumano para alguém em vias de ser mãe, o catéter, o barulho, acabou. Ela disse que não faria outra vez, ainda acariaciava sua barriguinha que eu dedicava horas e horas a beijos e cafunés e mordidas e ais e uis. Ela se levantou e foi até a bolsa, pegou um envelope pequeno, voltou para mim. Seu quase filho de 3 meses, um pequeno botão, ela chorava e meu coração cínico apertava. Verdades dóem.

Canalha, meu bem, canalha.

terça-feira, outubro 18, 2005

Mundo Cão

Assim fica difícil ganhar da realidade.

segunda-feira, outubro 10, 2005

V

Parecia tão perto que eu chorava de não conseguir tocar sua pele. Ela sentada ao meu lado sem me tocar, mexia com os dedos na areia e calava. Meus olhos na direção do mar. Meia hora ou um pouco menos se passou desse modo. Ela então disse, "E quando você volta?". Não sabia nem se voltaria, muito menos se voltaria para os braços dela. Não respondi de imediato, antes baixei os olhos e fiquei mudo. Resposta difícil, saída pela direita, "Não sei, espero que logo".

Dois meses, quatro meses, sete meses e doze dias. Apenas memória. Luana dormia e pedia para eu fazer silêncio enquanto escrevia qualquer bobagem no computador. Ela não dormia, ronronava, silêncio e volta e meia me espiava pra ver se eu não estava olhando mulheres nuas pelas suas costas. Eu não estava, não precisava mais delas tanto assim, a minha Lua era real e alegrava bem mais o homem dentro de meu espírito de menino sem saber para onde olhar. Eu tentava escrever palavras que tivessem valor em meio a tantas palavras já escritas, que alguém que chegasse a elas pudesse sentir através delas. Palavras reais, frases reais. Eu seria um rei.

De volta àquela tarde na praia, Adèle hesitou, mas segurou na minha mão em meio a um silêncio. Eu deixei seus dedos se amarrarem aos meus, como se fosse um beijo que ela gostava de dar em ocasiões especiais, que começava apenas lábios e terminava dentes. Havia pouca gente na praia no dia, um vento frio tomava conta da cidade e as pessoas preferiam se recolher em cinemas, camas, televisões e salas de estar. Uns poucos turistas arriscavam ver o mar com aquela frente fria. O sutil carinho me gritava "Não vá!", eu podia ouvir claramente entre as ondas, através do vento fino. Estávamos os dois ali para conversar mas não sabíamos como, talvez a impossibilidade de deixar para o dia seguinte nos exigisse sem filtros e nus. Era como se estivéssemos prestes a descobrir o quanto daquele nosso romance era amor e então tinha aquele medo de quem iria desapontar mais o outro, porque o nosso amor era mais romance.

Todo aquele silêncio estava nos dizendo a verdade, que havíamos pouco a dizer, apesar do tanto a sentir. Ela sabia que eu estaria partindo no dia seguinte, eu precisava do emprego, do dinheiro, de tomar as rédeas da minha vida, de sair da casa de meus pais. Eu já tinha mais de vinte e cinco anos e era homem feito, não precisava mais que Adèle entendesse ou compreendesse minhas escolhas - apenas gostaria que ela não me culpasse. Eu estava ali a seu lado e essas palavras não me ocorriam de sair pela boca, num tom sóbrio porém firme, numa fala de homem. Era o menino procurando um ponto fixo no horizonte para olhar. Ela então, feito mágica ou girassol, se achegou em mim e apoiou seu corpo no meu. Não chorou, mas diminuiu a respiração e fechou os olhos. Eu poderia mergulhar naquele mar, nadar contra a correnteza só para deixar que as ondas me trouxessem de volta depois, e perceberia Adèle me espiando forte, os músculos em ação, o sol por testemunha.

Então eu disse que iria apenas fazer o que precisava ser feito, viver. Eu preciava viver para ter uma vida. Ela escutava, o corpo no meu, olhos fechados, respiração devagar. La pétite mort. Eu preciso aprender a ser homem, disse, com essas palavras, e quando a gente é homem, tem que se acostumar a lágrimas no mundo. Acho que ali terminou nosso romance e sobrou na areia em torno de nós, aquele pouco de amor que adorna os casais que já não o são mais. Ela percebeu que dali em diante eu pretendia ser outro e ela, ainda que me doesse, ficaria para trás. Eu não poderia garantir nada, eu só queria ganhar o mundo. Se o preço a ser pago fosse a sua perda, eu seria homem para aceitar a dívida. Ela não perguntou mais nada. Ficamos em silêncio, deixando aquele amor que ainda queimava nos proteger do frio.

Luana já dormia na minha cama, na treva do quarto sob a luz do monitor. Desliguei tudo e deslizei para dentro dela. Escrever sempre me deixou com o maior tesão. Ela acordou e se virou de bruços, me olhando com o rabo dos olhos, apertou o travesseiro quando atingi o ritmo certo.

Eu te amo, meu bem, eu te amo.

quarta-feira, outubro 05, 2005

Monica, a mulher das bolas de gude

Conheci certa vez uma mulher que saía com bolas de gude nos seios para aparentar que seus bicos eram duros. Desnudos, sem as bolas, eram achatados, os seios. Mas não eram menos bonitos por isso. Só que a aparência vistosa que as bolas de gude lhes emprestavam chamava mais a atenção dos homens, dizia ela. Lembro da primeira vez que vi as bolas caindo de sua blusa. Justificou, envergonhada, que era uma mania desde a época de adolescente. Justificou olhando para mim, com os olhos e com o seios achatados. Belos, mas achatados.

Seu nome era Monica, a moça das bolas de gude, e foi ela que me ensinou a ter prazer em escrever. Ela dizia me aturar apenas pelas coisas que escrevia. Você, André Miranda, é muito mais encantador pelas palavras escritas do que pessoalmente. Eu sei, eu sei, Monica, mas não precisa esculachar. Um elogio não pode vir desacompanhado de uma crítica?

Mesmo com as alfinetadas de Monica, seu prazer em ler meus textos me animava a continuar. Apesar de tudo, nunca escrevi sobre as bolinhas de gude por achar que deveria evitar tocar em assunto tão íntimo e que pouco me dizia respeito. Escrevo sobre isso agora, tantos anos depois, somente por não ter mais contato algum com ela. E lamento a distância.

Monica sumiu da minha vida com suas bolinhas numa tarde de sábado. Havíamos saído na noite de sexta para um show de samba na Lapa. Era nossa terra, a Lapa. Jogávamos sinuca, bebíamos chope, cantávamos travestis e ouvíamos samba. Aquilo, sim, era vida, sabem? Alguns poderiam achar monótono, mas nossas sextas na Lapa, pós estresse de trabalho, eram fabulosas e apaixonantes.

O problema foi que eu e Monica discutimos por ciúmes - meus - naquela nossa última noite juntos. Faço uma pausa para uma explicação: não sou ciumento, mas gosto de me sentir especial. Portanto, qualquer comparação ou referência a casos passados, qualquer uma, de qualquer espécie, me fazem mal. Monica sabia disso, achava bobo e não se furtava a me provocar eventualmente. Ela dizia que não era proposital. Eu nunca acreditei.

Ouvir, então, da mulher das bolinhas de gude, que ela começou a gostar de sinuca com o segundo dos seus 25 ex-namorados, ouvir isso, entendam, não foi muito bom. A sinuca era uma coisa nossa, só nossa. Pelo menos era isso o que eu tentava acreditar. André, o tolo.

Fechei a cara, me confessei triste e ela fez graça. Riu, achou bobo, deu pouca importância. O homem das cavernas machista, então, se liberou e passei a perguntar tudo, simplesmente tudo. Quando você passou a gostar de beijos na nuca? Quem fazia melhor? E massagem no pé? E arranhões nas costas? E comer leite condensado direto da boca do parceiro? E dar o cu? Alguém te enrabava melhor do que eu?

Tomei um tapa na cara, Monica foi embora e na tarde seguinte me ligou para terminar nossa relação que mal havia começado. Tentei argumentar, pedi desculpas, mas não foi suficiente. Meu pecado havia sido grave demais, eu sei. Mas não consegui naquela noite suportar e segurar a tristeza.

Sinto saudade dela, de Monica. As bolinhas não me incomodavam. O único porém é que eu tinha um pouco de medo de engolir alguma delas numa noite bêbada e, digamos, mais selvagem. Isso poderia acontecer, achava, se eu esquecesse de acender a luz, retirasse seu sutiã e abocanhasse seu seio direito de uma só vez. Se a ação fosse muito rápida, mais rápida do que o tempo necessário para a bolinha rolar por sua bela barriga abaixo, eu poderia engolir uma bolinha.

Eu acho que essa história - e vale lembrar que ela é baseada em fatos reais - seria muito mais interessante se eu tivesse engasgado como uma das bolinhas de gude dos seios de Monica. Seria como engasgar com seu seio. Eu acharia, assim, que ela foi mais minha. Acharia, enfim, que eu havia sido especial e provavelmente teria escrito sobre ela antes.

terça-feira, outubro 04, 2005

.38

Desarmando-se a população, os bandidos não encontrarão mais resistência e o índice de criminalidade irá aumentar. Grande argumento. Onde está a minha Magnun?

Vamos esquecer que na campanha pelo "Não" existem nomes da categoria de Jair Bolsonaro ou Luiz Antônio Fleury Filho, vamos deixar pra lá que o Estado tem o dever de combater a criminalidade, vamos relevar que eu, você e a grande maioria da população que nunca deu um tiro em alguém na vida simplesmente não sabe como se matar alguém. Claro, todos temos o direito de nos defender - esse direito se estende a policiais que se valem de sua otoridade para nos extorquir ou quando flagramos vossas excelências com as cuecas recheadas de dinheiro nosso, correto?

Pelo que eu entendi, agora é guerra. Se o lance é armar a população para combater a bandidagem, o recado foi claro. Search and destroy. A segurança é um cano fumegante, já disseram.