domingo, setembro 28, 2003

Confesso que sempre preferi o silêncio à voz, qualquer voz, especialmente a minha. O silêncio é sábio e não fala asneiras, caráter que não pode ser atribuído às vozes em geral, e à minha em particular. Então, quando ela fixou seus olhos em mim e exigiu a minha voz, eu a odiei por todos os crimes cometidos no mundo naquele segundo. Eu sou péssimo em ódios, sinto vergonha de descobri-los rondando minhas intenções, mas humano que sou também odeio. Assim como amo, odeio.

Permaneci calado, não por medo, não por ódio, não por implicância infantil. Não tencionava mais falar e nada possuía ali a ser dito. Há momentos que esgotam a palavra, seja qual for a palavra. Limites. Havíamos chegado ao nosso extremo, o que anglófinos mais posudos e empetecados chamariam de point of no return. Nossos olhos se odiaram com amor naquele instante, e foi quase como a nossa primeira noite (que aliás se deu numa tarde, escondidos do mundo e suas horas, num quartinho de fundos sob parca iluminação e suspiros e orgasmos contidos). Eu te odeio. As palavras ricochetearam pela sala, o limite havia sido superado, agora era esperar pela colisão em andamento.

Não estávamos mais no amor, eu havia declarado o ódio. Pessoas morrem por conta desta bobagem, o ódio, e eu não conseguira evitá-lo mesmo assim. Brancos ainda queimam negros por conta desta bobagem, fiéis de facções rivais travam batalhas campais em memória ao ódio e até publicitários brasileiros e argentinos lucram algum tostão alimentando pequenos ódios internacionais. Quer ser alguém original? Então ame, e não odeie. Lennon foi alguém original. Gandhi foi alguém original. Eu não estava sendo. Ela continuou com os olhos em mim, mas já dava para sentir a diferença. O que eu respirava agora era também medo, o filho primogênito do ódio. Ela poderia tentar nos salvar daquele abismo, ela ainda poderia amar, o meu ódio seria ridículo, eu seria ridículo e deveria pedir desculpas. Desculpas pela minha ignorância, pela minha impaciência, por mim, pelo tempo que ela havia perdido em mim. Eu não seria perdoado, não queria e nem precisava de perdão, mas também estava um tanto quanto adentrado na etiqueta do mundo, onde se pede perdão por certos erros imperdoáveis.

Mas só um cego seria incapaz de perceber que ela não me amava, não mais, talvez nunca mais. Medo. Tensão. Punhos cerrados. Desculpa, não queria te dizer isso. Merda. Faz-se merda com mais facilidade do que se imagina nessa vida. Ah, por que deixei o meu silêncio tomar voz? Pior do que pedir desculpas, é pedir desculpas antecipadamente. Os olhos cada vez mais ferinos dela perceberam o vacilo de minhas desculpas gagas, e dominaram a situação. Eu era um homem perdido. Havia conduzido nós dois ao limite, havia transpassado o nosso limite e agora tentara covardemente voltar, mas a vida apenas segue, quem volta é o verbo. Pior, abdicara do meu silêncio, da única fortaleza que realmente poderia me abrigar. Agora, estava nu. E ela, com todas as armas na mão. Eu estava pondo tudo a perder, inclusive a minha dignidade, quase intacta até então. O que viria após minha atuação era a física, a toda ação corresponde uma reação, em igual sentido e direção oposta.

Seus olhos baixaram, as paredes da sala ficaram brevemente cinzas, o dia lá fora continuava azul. O silêncio dela vencia a cada segundo a minha respiração. E ela não me disse mais uma palavra. Apenas me dirigiu um último olhar enquanto abria a porta. Ligou a tevê e acomodou-se numa poltrona da sala, agora mais anil e sonora. Provavelmente não me viu partir, à procura de meu silêncio e de minhas palavras, que jaziam longe.