segunda-feira, setembro 22, 2003

A cidade e a cilada de Júlio Sarmento (parte 5)

(continuação do dia 16 de setembro de 2003)

No percurso entre a entrada do cortiço e a porta do quarto de Bia, em nenhum momento minha razão concordou em estar ali. Neste sentido eu não vacilei, tinha consciência do erro que poderia cometer. Mas o suposto erro era Bia, minha mais intensa paixão. Não havia razão que pudesse combater minha paixão. Foi ela, a paixão avassaladora pela qual fui acometido, que permitiu que Bia me conduzisse a seu quarto sem protestos.

À frente daquela porta eu não ouvia mais a chuva. Talvez tivesse parado, ou talvez estivéssemos separados do exterior por paredes bem espessas. Ou talvez, e é nesta possibilidade que mais tenho facilidade em acreditar, meu coração estivesse ressoando tão alto e forte que eu não poderia mais ouvir os sons da rua.

A porta se abriu, Bia a abriu e me convidou a entrar. Entre, Júlio, venha para meus braços, Júlio, afogue-se em pecado comigo neste quarto escuro, Júlio. Como eu gostaria, naquele momento ébrio, de voltar a escutar minha razão, ao invés de seguir as sugestões de Satã. Ah, Júlio Sarmento, um dia você foi católico e aprendeu que os ardis de Satã são imprevisíveis e tanto podem aparecer sob a forma de um saboroso rabo-de-galo, quanto a de uma bela ninfeta de 19 anos com aqueles olhos claros.

- Vem, entra.

Toda minha vida estava sendo posta a prova. Beatriz Carvalho era meu maior acerto, a mulher com a qual eu passara a eternidade sonhando, a mulher com quem eu me casaria e teria dúzias de filhos. Ao mesmo tempo, ela, a Bia, era minha tentação, era o mal personificado querendo que eu cometesse erros já cometidos um dia, mas sempre com arrependimento. Seria um erro encaminhar nossa relação a sexo em tão pouco tempo, sem termos intimidade, sem nem ao menos eu conhecer sua família. Mas era Bia que me convidava, intimava, induzia, a entrar em seu quarto. Era meu acerto que me tentava ao erro. Sua genialidade, Júlio, tão auto-enaltecida perante os amigos, teria que funcionar naqueles instantes que estavam por vir. Como acertar pelo caminho do erro?

Imaginei a infantil situação do diabinho e do anjinho, um em cada um de meus ombros, defendendo seu ponto de vista. Em outros tempos, eu não levaria mais de dois segundos para me decidir por seguir os conselhos do anjinho. Mas eu havia crescido e nem sempre me importava com algumas atitudes, apesar de ter consciência de um valor equivocado - não o mesmo de minha adolescência, não tão cristão como deveria ser. Eu era um hipócrita, um hipócrita nojento que não conseguia assumir seus atos, nem agir conforme seus pensamentos. Júlio Sarmento, o hipócrita.

Entrei no quarto com um aperto no coração, sem a certeza de ter sido causado por arrependimento ou por paixão. Eu mal conseguia respirar. Ela acendeu a lâmpada fluorescente e meus olhos, acostumados naquela noite ao frio e à escuridão, irritaram-se levemente.

O quarto era o mais simples possível, com uma cama, um criado-mudo, um armário, um espelho de corpo inteiro, um aparelho de som no chão e o banheiro. Havia também uma janela com vista para os fundos mas, mesmo se eu quisesse e se a cortina estivesse aberta, estava muito escuro e chovia muito para eu conhecer a paisagem da janela de minha Bia. Sim, dentro do quarto eu voltei a ouvir o barulho da chuva, apesar de não ter me fixado muito nisso. Bia pegou um cd no armário e colocou para tocar. Ela acompanhou Elis Regina, com um olhar sapeca especialmente nos primeiros versos.

- Se você pretende saber quem eu sou, eu posso lhe dizer. Entre no meu carro e na estrada de Santos você vai me conhecer. Vai me conhecer.

Neste momento, neste dia chuvoso de agosto, num cortiço no bairro da Lapa, Beatriz Carvalho começou a balançar os ombros e quadris enquanto cantava. Sua voz era suave, baixa e adocicada. Seu nariz estava lá exatamente como eu o conhecera, empinado. E seus olhos, meio sumidos com um terno sorriso, continuavam sendo aqueles olhos. Ela tirou o tênis preto, em pé mesmo, ainda balançando o corpo, e jogou num canto. Ficaram meias brancas, lisas, protegendo seus dedinhos que eu tanto gostaria de beijar. Não foi muito tempo, mas também não foi pouco, entre os três minutos e quarenta e um segundos de duração da música, para ela tirar também as meias, também em pé, ainda balançando. Eram pés lindos, pequeninos, 36, com as unhas bem cuidadas e sem esmalte. Eram pés de porquinho, os de minha Bia. Não sei explicar, talvez fosse o contorno sedoso e as dobrinhas formadas quando em movimento que me faziam associar os pés de Bia aos de um porquinho. E como eu queria beijá-los.

Desculpe-me cara Elis, mas Bia só andara sozinha e se sentira muito só. No passado, no passado. A partir daquele dia, eu, Júlio Sarmento, acompanharia Beatriz Carvalho. Ela tinha os pés descalços para mim, confiava em mim para dispensar seu tênis e sua meia.

(continua em breve)