Olhou bem a lâmina já gasta pelo tempo. Pregou os olhos nela tentando adivinhar se aquele pedaço afiado de metal teria coragem o suficiente para lhe desfiar a derme e pôr um fim àquela agonia em que mergulhara havia já quase trinta anos, desde que Dona Sônia presenteara o mundo com mais um menino. Batizaram-lhe Alfredo em homenagem ao avô, pai de seu pai, Alfredo igualmente. Certas coisas nunca mudam na vida.
A navalha não inspirava grandes atos nem dramas pasquins. Mal serviria para o seu devido fim, o ato de barbear. Alfredo, como o avô que carregava na identidade, odiava ter que fazer a barba, e seus pêlos assim exigiam em nome da higiene e da sociabilidade desde seus parcos dezesseis anos. E agora mirava fixamente o cabo vermelho quase alaranjado da navalha na esperança de que um meteoro alcançasse o número 143 da Rua Presidente Roosevelt, no bairro do Grajaú, na Tijuca, Rio de Janeiro, Brasil e liquidasse com ele, a lâmina vacilante e a angústia que tornava o ar em torno de Alfredo irrespirável.
Trancara-se dentro de casa na semana anterior. Era um homem silencioso, como um bom Alfredo deve ser. Morava sozinho e não fazia questão de ter muitos amigos, aliás, duvidava ele mesmo ser capaz de ser amigo de alguém. Outros Alfredos teriam bons amigos para um futebol, uma noitada ou apenas umas cervejas após o expediente, mas este Alfredo era singular. Ao olhar para os homens e suas barbas por fazer, cobiçava-os. O pai notou-lhe esta característica quando, ele ainda mais filho do que Alfredo, andava mais maliciosamente que seus coleguinhas no judô. O tempo encarregou de fazer de Alfredo solitário, o pai reparava que seu filho além de andar com certo molejo (comedido, decerto por medo ou censura prévia) não ligava para meninas marcando um cinema, não tinha um amigo presente, não se entusiamava com os jogos do Fluminense, nem ao menos espiava a empregada Carminha, uma mulata do Andaraí de mistérios e pecados estampados nos quartos famosos em todo o bairro, e Carminha não tinha muitos pudores nem para lavar a louça.
Quando o filho já terminando o ginásio, ainda solitário, passou a chegar em casa com a roupa do colégio suja e alguns hematomas no corpo o pai resolveu inquirir o por que daquilo. A mãe, que apenas amava demais os dois Alfredos e tentava não sucumbir à pneumonia que importunava seu tabagismo, aconselhou ao pai que não abusasse, como mãe já sabia que seu filho não era Alfredo como o pai, mas era igualmente Alfredo e cada um pode ser Alfredo do modo que bem entender. O pai não era tão tolerante, e nunca dera ao filho essas idéias de maricas, onde já se viu, filho meu apanhando do filho dos outros no meio da rua? Querem que te digam mulherzinha? Agora Alfredo apanhava na rua e em casa. O pai morreria desgostoso do filho três anos após Alfredo graduar-se em Filosofia. A mãe não conseguiu ver o filho, seu único filho, abraçar a carreira acadêmica, a única coisa no mundo que o faria sorrir além dos quitues que Carminha, já envelhecida tanto quanto a mãe, preparava para ele nos finais de semana.
Preferiu fazer da casa dos pais a sua residência também. Após a morte do pai, Carminha ainda fazia questão de aparecer quinzenalmente não apenas porque sentia-se na obrigação profissional de cuidar daquela casa que também fora um pouco sua por mais de vinte anos, mas especialmente porque aquele Alfredo era um pouco seu também. Poderia não ter sido amante clandestino de suas ancas como o pai, mas sabia lhe fazer sentir-se mulher igualmente por outras formas. Quando não encontrava-se na faculdade pesquisando ou lecionando, trancava-se em casa, absorto em leituras. Nem toda a filosofia do mundo solucionava a angústia de ser surrado costumazmente pelo pai, Alfredo como ele e o avô que nunca pôde conhecer, talvez por não ter querido encurralar Carminha por detrás de portas e despensas.
Tentou análise, prostitutas, clubes de suingue, salas de chat na internet, michês e mesmo bolsistas. Assustava-se com a violência de sua própria excitação, pedia desculpas e isolava-se num canto do cômodo com medo de ferir aquele que poderia ser seu parceiro. Lembrava do pai e chorava de medo. Um dia conheceu Cristina, dez anos mais jovem e que o olhava demais enquanto ele filosofava sobre a poética na Grécia Antiga. Cristina aparentemente era a única coisa que lhe restava para salvar a sua sexualidade perdida, uma mulher, quase uma piada de mau-gosto. Cristina um dia resolveu por bem ou por mal devorar aquele Alfredo que a fazia palpitar e dessa vez, talvez pelas doses de vodka a mais, Alfredo não teve medo do pai, nem de si, nem de nada. A ironia é que Alfredo não sentia o menor desejo por Cristina, porém não conseguia ser aquele homem com os homens que desejava. Ele começou a se desesperar.
Cristina, porém, ignorava que o calado Alfredo não a desejava. Mesmo porque encontravam-se quase toda noite, e Alfredo, ao contrário do que muitos julgavam, sabia ser homem como poucos na hora do vamos ver. Certas coisas nunca mudam na vida dos Alfredos. Então Cristina apercebeu-se que tanto sexo causa filhos. Alfredo desesperado consigo próprio, perdeu o norte, pediu dispensa na faculdade e isolou-se em casa. Agora encarava a lâmina, sua única esperança de vida. Como poderia ele pôr no mundo mais um Alfredo, essa raça que desgraçara a sua vida? Como explicar, e antes de explicar simplesmente dizer para Cristina que não a desejava, nem hoje nem jamais, e que não desejava mulher alguma por sinal? Como amar uma criança que era fruto de seu ódio pela sua impotência, do ódio de seu pai pelo filho maricas, do ódio do mundo pela sua opção sexual? Como poderia ele, sem nortes, ter que nortear um filho na vida? Como poderia amar se apenas havia conhecido rancor e piedade? Empunhou a navalha com firmeza e suspirou decidido. Foi quando um meteoro adentrou no quarto, lhe esbofeteando o rosto e arrancando a navalha das mãos.
Carminha o olhou esbaforida, sem voz, as lágrimas mesclando-se ao suor em sua negra pele e então ele entendeu que a sua vida poderia ser simples. Simples como amar. Precisou chorar muito antes de contar para a mulata que aquele Alfredo, quem diria, seria pai.