A cidade e a cilada de Júlio Sarmento (parte 2)
(continuação do dia 02 de setembro de 2003)
Na Joaquim Silva, mesmo com toda aquela chuva, uns e outros ainda arriscavam uns passos tortos de samba no meio da rua. Bêbados, todos, como eu. Caminhei em direção à escadaria do Convento de Santa Teresa, desviando dos passistas eventuais que imploravam por mais alguns centavos para comprar bebida. Ignorei. Eu mesmo estava quase sem dinheiro e não gostava de colaborar com os vícios alheios.
O que eu mais gostava de fazer na Joaquim Silva era ficar admirando aqueles cortiços velhos. Tinham histórias nunca contadas que me encantavam. Por diversas vezes eu pensei em passar uma noite ali, mas nunca me motivei verdadeiramente. Acho que meu problema era medo mesmo. Eu ficava divagando que poderia acontecer uma daquelas brigas de casais, que deixam mortos. Durante a noite, uma sirene acordaria todo o cortiço, o rabecão viria buscar o cadáver e o João do Rio seria o único capaz de descrever a cena com o charme necessário que um crime num cortiço da Lapa exige. Só que o João do Rio já deveria ter morrido há muito tempo e um crime num cortiço da Lapa envolve todo mundo, até mesmo os turistas acidentais que só estão ali para curtir uma única noite.
E foi saindo de um desses cortiços que inspiravam meus sonhos rebeldes que a vi pela primeira vez. A chuva, a bebedeira e a Joaquim Silva não estavam mais ali. Éramos apenas o Júlio, o cortiço e a Bia. Sim, Bia era o nome da moça que descia pelas escadas da Pensão da Jana. Ela vestia uma calça jeans velha e apertada, tênis preto surrado 36 e um casaco bege de microfibra. Mais tarde eu descobriria que ela não usava sutien. Seus cabelos eram castanhos, curtíssimos, e seu pequeno nariz era empinado. Ah, e como eu adorava narizes empinados! Ela não me parecia ter mais de 1,70m, mas nunca fui bom em calcular alturas. Seus olhos claros iluminavam a noite e penetravam no meu inconsciente. Hoje, depois de tanto tempo, Bia não passa de um borrão em minha lembrança, a não ser por aqueles olhos. Provocaram-me danos irreversíveis, seus olhos.
Não consigo dizer exatamente em que momento eu me apaixonei por Bia. Sei que foi naquele período em que restaram no mundo apenas eu, ela e o cortiço. Se ela tivesse sorrido, eu teria certeza do motivo, mas ela não sorriu. Bocejava apenas enquanto descia as escadas, a Bia. Ah, Júlio, não vá se meter novamente com uma mulher, lembre-se do que aconteceu com a última, seu bêbado.
Bia deveria ser garçonete de um restaurante japonês. Ficaria linda de quimono, rosto repleto de base branca e lábios vermelhos. Ou talvez ela fosse aeromoça, de terninho, salto alto e broche da companhia aérea, perguntando aos passageiros se queriam chá ou café. Ou então Bia poderia ser uma estudante de sociologia vinda do interior, que morava num cortiço da Lapa por não ter família em nossa grande metrópole.
- Oi, eu me chamo Júlio, Júlio Sarmento, e estou apaixonado por você.
Ah, maldito Júlio, o que a bebida o fez fazer? Eu poderia ter pensado em alguma forma mais inteligente de me apresentar a Bia, mas não, eu deixei o resquício do expelido rabo-de-galo dominar minha mente e me declarei como uma colegial tola a seu primeiro namorado. A bebida é uma porta aberta ao demônio, Júlio, não abra portas ao demônio. Eu sei, eu sei, D. Tadeu, estou arrependido de ter bebido tanto e agora esta estupidez que disse a Bia não passou de minha penitência.
Ela me olhou profundamente com aqueles olhos de difícil descrição e por dias não disse nada sobre minha paixão. Estendeu sua mão para que eu a beijasse, deu um passo adiante deixando a proteção do pequeno toldo acima da porta do cortiço e se expôs à chuva.
- Seu bobo. Meu nome é Beatriz Carvalho.
Eu beijei sua mão com a ponta dos lábios, fazendo bico com a boca e fechando os olhos. A chuva caía forte, mas não havia chuva. Nem bebedeira, nem Joaquim Silva, nem Lapa, nem cortiço e nem mesmo Bia. Júlio Sarmento estava beijando aquela mão, a mais doce mão que ele jamais beijara antes, a suave mão de sua Bia. E o que eu mais desejava era que aquele inocente beijo durasse para sempre. Mas sempre, Júlio, sempre é tempo demais.
(continua em breve)