sexta-feira, fevereiro 28, 2003

O amor de cada um (III)

Maurício tinha 11 anos e estava na 5ª série. Ele gostava de jogar bola, de soltar pipa e do sorvete de morango da Kibon. Era fã do Ronaldinho e de seu avô, Emanuel, um senhor risonho que adorava contar histórias e brincar com os netos. Maurício não tinha a mínima idéia da idade de seu avô, mas sabia que ele era ator, ou algo parecido.

Em agosto, bem no meio do ano letivo, a turma 53 do Colégio Nossa Senhora das Dores recebeu uma aluna nova, que vinha de mudança. Era a turma de Maurício e a menina chamava-se Andréa, de 10 anos. O pai de Andréa era supervisor senior de uma empresa de cartão de crédito e acabara de ser transferido para a filial do Rio de Janeiro. A jovem, naturalmente, ficou triste em largar seu colégio e seus amiguinhos de Curitiba, mas não teve outra opção.

Maurício e Andréa mal se falaram até chegarem à 8ª série. Ele com 14, ela com 13 anos, acabaram ficando no mesmo grupo para uma pesquisa de história sobre a República Velha. O grupo na verdade era uma dupla e os jovens passaram bastante tempo juntos na biblioteca do colégio. Só os dois. Ambos eram alunos aplicados e não pouparam esforços para fazer o melhor trabalho possível.

Porém, no meio da pesquisa, de repente como costumam ser as histórias de amor, aquelas crianças apaixonaram-se e se beijaram. Estavam sozinhos na biblioteca, no canto esquerdo, perto da janela maior onde a bibliotecária, Dona Ivone, não conseguia enxergar. Batia uma brisa fria, Andréa reclamou, Maurício cedeu seu casaco e disse “eu acho que estou gostando de você”. Andréa assustou-se, o frio estranhamente aumentou, sua respiração fraquejou e ela não conseguiu responder. Mas o sentimento era recíproco e Andréa não interrompeu o desengonçado beijo do assanhado Maurício.

Era o primeiro beijo de Andréa. Maurício não. Ele já havia beijado duas ou três meninas nas festas juninas da paróquia onde fizera catecismo – era experiente, gabava-se. Maurício chegou em casa, ligou para seu avô e logo contou a novidade. Já Andréa não contou para ninguém. Teve vergonha.

Dali começaram a namorar. Seus sogros os adoravam, iam ao cinema, lanchavam e tomavam sorvete. Passaram a fazer todos os trabalhos do colégio juntos. Os professores tinham orgulho do casal, os colegas morriam de inveja e os amigos ardiam de ciúme do grude violento que aqueles dois tinham um com o outro. Algum tempo depois, 15 e 14 anos, os pais de Maurício viajaram, Andréa mentiu dizendo que ia ao cinema num sábado à tarde e eles transaram. Eram virgens, inexperientes, enrolaram-se um pouco com a camisinha, mas adoraram. Repetiriam tudo, com alguns incrementos, muitas vezes nos anos seguintes.

Para Andréa, o melhor da primeira vez deles foi a massagem que Maurício aplicou. Conselho de seu avô Emanuel, sempre confidente do rapaz. Já Maurício achou tudo meio estranho e só consegue se lembrar da cara que seus amigos fizeram quando ele lhes contou o ocorrido no dia seguinte. Ele se tornou o herói de seu grupinho por três meses. Aí outro menino, Marcelo, papou a filhinha mulata da empregada, aniquilando a exclusividade de Maurício e seu posto de herói.

Ele com 18, ela com 17 anos, passaram no mesmo vestibular e foram estudar arquitetura na UFRJ. Continuaram fazendo todos os trabalhos juntos, sentavam lado a lado e às vezes constrangiam os professores com beijos apaixonados durante as aulas. Para ser diferentes e se acharem especiais, comemoravam aniversário de namoro de 7 em 7 meses. Trocavam cartões, presentes e muitas juras de amor.

Formaram-se arquitetos, trabalharam bastante e seis anos mais tarde, 28 e 27 anos, conseguiram montar um escritório juntos. Já haviam se casado alguns anos antes numa bela cerimônia na Igreja Santa Luzia. Não quiseram festa e passaram sua lua-de-mel em Barcelona, Espanha, onde Andréa tinha uns primos.

Casados, eles adoravam ir ao teatro e a exposições de arte. Comiam com prazer e com palitinhos comida japonesa e nunca dispensavam um bom vinho – tinto seco, obviamente. Às vezes brigavam ou discutiam. Maurício então acordava cedo, comprava flores, fazia o café e acordava Andréa com aquela bela massagem que seu falecido avô Emanuel um dia o aconselhara. Sempre quando massageava as costas de Andréa, Maurício lembrava com um saudoso sorriso do dia em que descobriu que seu avô era presidente da Associação de Senhores Fantasiados de Papai-Noel do Rio de Janeiro.

E assim os anos de Maurício e Andréa foram passando. Enriqueceram juntos, os danados! 32 e 31 anos, eles tiveram seu único filho, Jorge, olhos da mãe, cabelo do pai. Durante a gravidez, Maurício adorava deitar sua cabeça no colo da esposa e ficava lendo seus romances preferidos em direção daquele barrigão de grávida. Aquele guri deve ter nascido jurando que era um Buendía! Nessa época já haviam parado há muito de contar e não sabiam mais há quantos 7 meses estavam juntos. Mas continuaram contando os anos e trocando cartões, presentes e muitas juras de amor.

Fizeram bodas de prata, Jorge casou, nasceu Lucas, o neto, eles se aposentaram e Jorge assumiu o escritório de arquitetura dos pais. Nas bodas de ouro o casal resolveu visitar novamente Barcelona. Nunca ficaram mais de um dia sem se ver, nunca viajaram um sem o outro e nunca traíram. Já velhinhos, morando sozinhos numa bela casa projetada por eles num condomínio fechado da Barra, adoravam ver gravações em vídeo de seu filho e de seu neto brincando no jardim. Também ficavam lendo as dúzias de cartões de amor que haviam trocado por toda a vida. Iam muito ao teatro e continuavam sem dispensar um bom vinho.

Alguns anos mais tarde, Maurício com 82, Andréa com 81, Jorge com 48, Lucas com 23, Andréa adoeceu. Câncer no pulmão daquela teimosa fumante de cigarros de baixos teores. O diagnóstico demorou e ela logo faleceu.

No dia seguinte ao velório, em sua casa, Maurício dispensou o filho, o neto e os amigos. Queria ficar sozinho. Colocou no cd player João Gilberto cantando “Este seu olhar”. Era a música deles, dizia Andréa. Maurício tentou cantarolar um pouco mas suas lágrimas o interrompiam. Lembrou então daquele primeiro trabalho de história sobre a República Velha que os uniu muitos anos atrás. Eles tinham o guardado. Maurício tirou a velha pasta amarela do fundo do armário e, a algum custo, conseguiu achar o trabalho no meio de tantas recordações. Estava escrito a caneta vermelha, pela professora Bruna:

“9,5 – Muito bem, mas ainda faltou um pouquinho mais de aprofundamento. Talvez vocês tenham perdido esse 0,5 ponto nos beijos mais demorados.”

E logo abaixo, ainda por Bruna:

“PS. Brincadeira! Parabéns pelo namoro e felicidades!”

Maurício então, 68 anos depois, com dor no coração, questionou-se se havia valido a pena.

domingo, fevereiro 23, 2003

A rua principal ou 5 minutos do trajeto entre Gávea e São Conrado

Mal cabem dois carros na rua principal. Rua de mão dupla. Talvez estrada ou avenida. Mas e daí? Um caminhão de carga pára e seus dois ocupantes, mulatos de 25 ou 26 anos, saem e descarregam alguns móveis para o interior de uma luxuosa loja de móveis localizada na rua principal. O trânsito fica lento. O motorista do 546 parece impaciente: passa a mão na semi-careca e começa a olhar para o lado. Como, neste momento, não passam mulatas rebolando, o motorista do 546 está impaciente. Na rua principal, onde ainda mal cabem dois carros, minha Parati 1.6, ano e modelo 2000, e um ônibus disputam a passagem ao lado do caminhão de carga. Uma kombi pertencente a uma dessas malditas cooperativas de kombis buzina atrás de mim. "Vai logo", filosofa o motorista da kombi, sujeito mulato de 25 ou 26 anos. "Vou por onde, porra?" é a pergunta que humildemente faço em silêncio. Aquela cidade não é minha terra. Acho melhor não contrariar seu filósofo de forma tão rude. "Mas senhor, não há espaço por onde meu veículo possa passar." O filósofo se calou, provando que minha escolha fora adequada.

A rua principal é bastante íngreme. Estamos num morro, afinal. A curva, pela qual meu carro já deveria ter passado há dois minutos e meio caso o caminhão não estivesse parado em frente àquela loja de móveis ou um 546 não estivesse no caminho contrário, é fechada. Uns 30 ou 45 graus. O ônibus seria obrigado a inverter a mão para passar pela curva. O motorista já havia começado a trajetória, mas esbarrou no caminhão. Algumas pessoas, transeuntes por falta de opção e pedestres por falta de dinheiro, caminham ritmados pelas calçadas, pela rua principal, por dentro das lojas e pelas varandas das casas. Não parecem se importar com aquele caminhão parado em frente à loja de móveis. Todos sorriem. Também não se importam com as dúzias de moto-táxis que sobem calçadas e pegam a contra-mão. Para mim, forasteiro, parece arriscado. Nem pilotos nem passageiros se importam. Nem uns nem outros usam capacetes.

O impasse dura alguns minutos. Uma verdadeira batalha pelo direito de passar antes do outro. Minha parati ou o 546? O anjinho me diz que, caso eu já tivesse permitido a passagem do ônibus, eu também já teria passado.

"Onde está seu orgulho, cabrón?", pergunta o diabinho.

Não sou daquela cidade, mas ainda sou brasileiro. Machista. Orgulhoso. Teimoso. Insisto alguns segundos acelerando com o pé direito levemente o automóvel. O pé esquerdo, quase por vontade própria, faz questão de frear. O motorista do 546, mulato semi-careca de uns 25 ou 26 anos, não muda o semblante. Coça a cabeça e olha para o lado.

Reflito. Já se passaram três minutos e quarenta e dois segundos. A guerra logo vai explodir. A kombi recomeça a buzinar. O ônibus também. As pessoas sorridentes da rua principal, transeuntes, mulatas de 25 ou 26 anos, continuam sua dança. O rapsodo esbraveja "lupa só paga um real, lupa só paga um real". As buzinas não são mais ritmadas. Mas também não perderam o compasso. Concidem freneticamente num som constante. O clímax se aproxima. Quatro minutos e seis segundos. O motorista da kombi ameaça saltar, mas teria que largar sua buzina.

Engreno a ré da parati.

Não estou mesmo com pressa é a frase que embala meu ego como auto-consolo típico de brasileiro - macho, sim, senhor. O 546 passa. Seu motorista continua coçando a semi-careca e olhando para o lado. Os ocupantes do caminhão continuam descarregando seu lar. O motorista da kombi pára de buzinar e acompanha sedento o quadril de uma mulata que atravessa a rua principal. E os transeuntes continuam sua dança. Todos 200 mil habitantes são mulatos e têm 25 ou 26 anos. Eu não. Sou um forasteiro playboy de 22 anos. Nunca andei de 546, de 591 ou de moto táxi. Nunca li o Katano, nem o Correio Zona Sul. Fiz bem em desistir daquela batalha na rua principal.

sexta-feira, fevereiro 14, 2003

O amor de cada um (II)

Chegaram em sua casa às 21:45, entraram e foram direto disputar o controle remoto.

Ela, Sabrina, 52 anos, queria assistir a Fitzcarraldo, um filminho interessante do alemão Werner Herzog, gravado na Amazônia, com belas atuações de Klaus Kinski e Milton Nascimento. Estava programado para passar num desses canais de tv a cabo, talvez Eurochannel, talvez Cinemax, não recordava bem.

Ela, Maria Júlia, 16 anos, queria acompanhar o Big Brother. Era terça-feira, dia de eliminação, e Maria Júlia estava curiosíssima para saber quem cairia fora da casa. Além disso, Adriana, uma carioca de 23 anos era sua amiga, dizia ela, e participava do programa. Elas haviam se conhecido numa colônia de férias, quando Maria Júlia tinha 12 anos. Adriana tinha 18 e era monitora. Se no dia do julgamento algum deus perguntar a Adriana sobre alguma lembrança de Maria Júlia, a resposta será negativa.

Sabrina e Maria Júlia conheceram-se há pouco mais de dois meses, quando começou o ano letivo. Maria Júlia estudava no colégio Cruzeiro desde sua 5ª série. Dizia gostar de lá. Estava agora no 2ª ano do ensino médio e Sabrina era sua professora de história. Com duas semanas de aula, Sabrina, a professora, perguntou à turma se alguém estava interessado em discutir na casa dela alguns filmes relacionados a fatos históricos. Quatro estudantes gostaram da idéia, mas só Maria Júlia apareceu. As duas assistiram a Em Nome da Rosa e a professora contou para a aluna um pouco da história da Igreja Católica - sempre em tom crítico. Ao fim da falação de Sabrina, Maria Júlia já estava apaixonada.

Na semana seguinte, Maria Júlia não resistiu a sessão de Gladiador e se declarou para sua professora. Sabrina primeiro achou graça. Ela estava um tanto velha pra receber uma declaração de amor de uma menina de 16 anos. Não tinha mais o corpo e beleza da adolescência. Seus dois filhos, ambos mais velhos do que Maria Júlia, provocaram efeitos irreversíveis em Sabrina. Celulite, peitos murchos e caídos e profundas olheiras. Ela usava aqueles óculos compridinhos, comuns em estudantes de cinema - era um charme, achava. Disse a professora à aluna:

- Maria Júlia, pare com isso que eu me encabulo.

Maria Júlia não parou. Disse que gostaria de se entregar para sua professora. Abriu os dois botões de sua saia listrada e a escorreu para baixo até os pés. A professora ficou sem ação, prendeu a respiração e o máximo que conseguiu foi gaguejar. Maria Júlia era magra, suas medidas eram adolescentes e modestas, mas sua pele era lisa, levemente corada de sol. Uma graça. A aluna continuou, um tanto desengonçada, e tirou sua blusa preta. Não usava sutiã, não precisava, seus seios eram pequenos. A professora não resistiu e as duas transaram ali mesmo no sofá. No vídeo, Russel Crowe confabulava com um negro dentro de uma prisão.

Desde então, dia 5 de março, as duas começaram a namorar. Os filhos de Sabrina faziam intercâmbio e não havia empecilhos para seus encontros com sua aluna. Maria Júlia foi a primeira mulher com quem sua professora tivera relações. Já a aluna tinha sido iniciada com 12 anos, numa colônia de férias, com uma tal Adriana, monitora, então com 18 anos. Alguns diretores da colônia até desconfiaram do caso e nos anos seguintes não convidaram mais Adriana para trabalhar lá. As duas jovens nunca mais se encontraram e Maria Júlia guardava na lembrança os óculos compridinhos que a estudante de cinema Adriana ostentava.

Sabrina sabia da história de sua namorada com Adriana e morria de ciúmes. Ela, mais velha, nunca deixaria que Maria Júlia assistisse ao Big Brother. A opção portanto foi Fitzcarraldo. Sabrina emocionou-se com a magistral interpretação do falecido José Lewgoy. Maria Júlia dormiu.

quinta-feira, fevereiro 13, 2003

Cacá, agora eu tb faço parte desse "grupinho" de vocês.....? Nossa, estou muito emocionado. Muito mesmo. Eu coloquei um email meio louco para isso aqui.... acho que não é importante não, né? Não quero ficar cadastrando meu email por aí para depois ficar recebendo um monte de porcarias.......

quarta-feira, fevereiro 12, 2003

O amor de cada um (I)

Com 23 anos de vida ele ainda se sentia desamparado. Seus pais, há muito, já haviam o deixado. Vivia sozinho em um apartamento escuro, bem no centro daquela cidade. E, na maioria das vezes, estava sozinho.

Depois de poucos meses de pura solidão, ele, não aguentando mais, começou a conversar com panelas, pratos, chuveiro e até janelas. Animava os objetos a sua volta para dar ânimo a si mesmo. O mundo externo, dito real, fora de seu apartamento, passou a pouco lhe importar. Acreditava que tanto sua vida em sociedade quanto seu trabalho eram ainda mais enfadonhos. Trabalhava na assessoria de imprensa da secretaria de meio ambiente da cidade do Rio de Janeiro. A assessora-chefe era uma velha amiga de sua mãe e o empregara de favor. Ela, imaginava ele, odiava seu trabalho e não via a hora de sua mãe morrer para poder manda-lo embora sem maiores culpas. Ele não se importava.

Chamava sua caneca de estimação, um presente de sua falecida tia-avó, de Jéssica. Tirava Jéssica do armário várias vezes por dia, mas nunca a usava como objetivo principal de uma caneca. Ela tinha que respirar, pensava. Pedia licença, dava bom dia, masturbava-se em cima de Jéssica, limpava com sabão, dizia até breve e a colocava de volta. Tinha tara por Jéssica e se martirizava por isso. Sua última namorada o deixara exatamente 25 meses atrás. Desde então não conseguiu sair com outras mulheres e causava-lhe arrepios a simples hipótese de pagar por sexo.

Certa vez procurou a psicóloga de seu trabalho para contar sobre Jéssica. Ele sabia se tratar de uma perversão.

Contou tudo para Dra. Marisa, terapeuta freudiana, 36 anos, bela bunda, seios pontudos e lábios carnudos. Marisa era a moça mais cobiçada em seus tempos de colégio. Com 13 anos, numa freada repentina que fora obrigada a dar com medo de colidir com um caminhão em movimento, Marisa caiu levemente para frente do banco da bicicleta naquela haste metálica rígida. Nesse exato dia ela havia combinado com a prima que ambas sairiam de saia e sem calcinha. Acordo feito e cumprido, Marisa sangrou entre as pernas e, menina criada no interior segundo preceitos cristãos, achou que tinha sido deflorada. Ledo engano, viria a descobrir aos 15 anos, numa aula de biologia. Foram os 2 anos de trauma que a fizeram estudar psicologia.

Marisa ficou sabendo de todos sentimentos dele por Jéssica. A doutora o aconselhou a tratar melhor seu amor, não a deixar sozinha em casa por tanto tempo e dar presentes. Uma das reclamações mais recorrentes era sobre a pouca demonstração de carinho de Jéssica por ele. No final da consulta, ele ainda pensou em contar que Jéssica era uma caneca branca com uma daquelas carinhas amarelas sorridentes, smiley, na lateral. Mas ele achou que Marisa demonstrara-se uma péssima conselheira, falara pouco e não teria nada a acrescentar. Foi embora dali e nunca mais viu Marisa. Largou o trabalho e se fez esquecer pelo mundo ao lado de Jéssica.

segunda-feira, fevereiro 10, 2003

O programa Fantástico do último domingo apresentou uma matéria sobre o sistema de cotas adotado pela UERJ, Universidade Estadual do Rio de Janeiro. A matéria foi claramente contra o sistema de cotas, como talvez a maioria de nós, "pessoas com acesso à internet e com tempo de ler um blog estúpido", também é.

As cotas para negros e pardos (40% das vagas) e para estudantes de escolas públicas (50% das vagas) nas universidades estaduais do Rio de Janeiro foram regulamentadas por leis estaduais sancionadas em março pelo então governador Anthony Garotinho, do PSB. Para que os estudantes da rede pública pudessem concorrer a uma vaga na UERJ, eles teriam primeiro que passar pelo SADE (Sistema de Acompanhamento de Desempenho de Estudantes do Ensino Médio). Dos estudantes que fizeram o SADE em 2002, cerca de 45% tiveram conceito E, o mais baixo, e foram automaticamente impedidos de particpar do exame de seleção. Já 33% obtiveram conceito D - só que esses puderam concorrer. O resultado do SADE só fez comprovar o que todos já sabíamos, que o ensino público é bastante ruim.

Passado o SADE, há o velho vestibular. Não importa o resultado, no mínimo 50% das vagas ficam nas mãos de estudantes do ensino público. Se ainda assim 40% do total das vagas não tiverem sido preenchidas por negros, será aplicada a cota racial. Só há um critério para avaliar se o estudante deve ser considerado negro: sua declaração ao se inscrever no vestibular. Qualquer um pode se declarar negro e se beneficiar pelo sistema de cotas. A universidade não contestará essa declaração.

Segundo dados do Provão 2001, apenas 2,2% dos estudantes de todo país que concluíram um curso universitário eram negros. A discrepância social e racial no ensino superior brasileiro é clara, mas não penso que o sistema de cotas seja a solução ideal. Talvez ninguém realmente ache isso. Todos concordam que os governos deveriam, antes de tudo, melhorar seus ensinos fundamental e médio. O problema é que não se melhora toda uma rede pública de ensino deficiente de uma hora para outra. Uma das maiores críticas ao sistema de cotas é justamente permitr a entrada de estudantes sem preparo às universidades.

O sistema de cotas parece, sim, apenas mais uma atitude assistencialista. Como uma pessoa, quando doente, que toma um anestésico para parar a dor em vez de entrar num tratamento com antibióticos para sanar de uma vez por todas a doença. A pergunta que deixo para vocês, pacientes leitores que chegaram até aqui, é se podemos suportar por mais algum instante essa dor, essa discrepância racial e social na educação de nosso país.

Espero que, pelo menos, todos concordem que o sistema de cotas, por si só, não é solução para a educação deficiente do país. Promover inclusão social apenas proporcionando oportunidades sem, no entanto, garantir um bom preparo à população não adianta nada.

Porém, creio ser injusto simplesmente condenar o sistema de cotas.

Panfletozinho interessante que eu ganhei no III Fórum Social Mundial. Tá no meu mural num lugar de destaque!

domingo, fevereiro 09, 2003

Yemanjá

Domingo pela manhã, 09 de fevereiro, vou a Sepetiba - lugar distante, isolado, sujo e quente, onde dizem haver uma praia - para filmar um cortejo em homenagem a Yemanjá.

Como curiosidade, o material gravado será usado para um projeto de um programa de cultura afro-brasileira que tem tomado meus fins-de-semana.

Ainda como curiosidade, Yemanjá é um orixá. No sincretismo com o catolicismo, ela seria Nossa Senhora da Conceição. Sua saudação é ODOIYÁ, suas cores são rosa e azul-claro, seu domínio é o mar e seu animal litúrgico é a cabra. O dia de Yemanjá de verdade é 02 de fevereiro.

A gravação foi bacana, tudo correu bem, colhi boas imagens, passei ao lado da comunidade onde foi gravado os anos 60 do filme Cidade de Deus e ninguém incorporou nenhum santo perto de mim.

Mas houve um fato curioso. Estava tranquilamente apreciando uma barraquinha vendendo blusas com as imagens de orixás, quando uma blusa despenca do cabide bem aos meus pés. A vendedora, a caráter vestida de baiana, pega a blusa no chão e revela uma imagem de Exú, o mais terreno dos orixás, muitas vezes associado erronemente ao capeta, tinhoso, belzebu, filhote de cruz-credo. Enfim, ao diabo. A falsa baiana levanta-se, olha para mim, dá um passo para trás, arregala os olhos cansados e pergunta com toda seriedade e propriedade:

- Você tem algum trato?

Respondo automatica e naturalmente "que eu saiba não". A baiana não fala mais nada e recoloca a blusa no seu devido lugar.

Definitivamente eu tenho que parar de andar nesses ambientes.

quinta-feira, fevereiro 06, 2003

Eduardo, meu companheiro de blog, onde você foi parar?

terça-feira, fevereiro 04, 2003

Tempo Perdido

Ano passado gravei uma entrevista com um rapaz portador de HIV. Não foi a primeira, nem será a última entrevista com um soro-positivo que farei, mas nessa minhas impressões foram fortes. Não lembro bem seu nome, mas irei chamá-lo, não por acaso, de André.

André tem uns trinta e poucos anos e é portador do vírus há uns treze. É bonito e aparentemente saudável. Ele acredita que tenha sido contaminado ao compartilhar seringas de heroína com amigos e com a namorada durante um show do Rock in Rio II. Não perguntei se algo especial o motivou a fazer o exame ou se ele descobriu por acaso. Mas perguntei o que havia acontecido com aquela namorada. "Morreu poucos anos depois", respondeu, acrescentando que houve vezes em que teve que enterrar amigos em três semanas seguidas.

Depois da contaminação André ficou quatro anos sem ter coragem de se relacionar sexualmente com alguém. Na verdade, nem coragem para beijar ele tinha. Antes de tudo, a barreira a ser vencida era o preconceito contra si mesmo: precisava aceitar sua realidade.

Quando voltou a se relacionar, André escolhia mulheres que também eram portadoras do vírus. Mas logo desistiu da idéia simplesmente porque não aguentou perder seguidas namoradas pelo mesmo motivo, a morte. Ao se decidir por não mais sair com moças soro-positivo, ele caiu, então, em outro problema. Deveria contar ou não sobre a doença? Atualmente ele não conta, a não ser que o relacionamento seja mais duradouro. Seu motivo, apesar de questionável, é bem compreensível por uma história que ele viveu.

André foi parar, um dia, em um motel com uma garota que ele acabara de conhecer. Com as "coisas" já bem encaminhadas, ambos sem roupa, ele achou melhor contar. "Tenho Aids", disse. A garota levantou da cama assustadíssima e, nua, saiu correndo escada abaixo. "Ela parecia fugir de um bandido, como se a Aids estivesse a perseguindo", recorda André. Essa história aconteceu no meio da década de 90 do século passado. Segundo ele, esse tipo de coisa pode acontecer tranquilamente nos dias de hoje.

O primeiro pensamento que André teve ao pegar o exame foi o suicídio. Essa idéia só lhe deixou três anos mais tarde, com muita, muita análise. Seu maior problema não era carregar o fardo de ser portador de HIV, mas viver sempre pensando que a qualquer momento ele poderia morrer. É estranho porque não é preciso ser soro-positivo para se ter certeza de que a qualquer momento se pode morrer e, nem por isso, as pessoas ficam pensando em suicídio. Talvez a diferença seja que a vida de André dependa de um combinado de remédios e mesmo com eles essa vida ainda é incerta. Para viver, a ele não basta somente respirar e comer.

Sobre o coquetel de remédios, no início do ano um médico lhe disse para não tomar tantos. Depois de treze anos de remédios seu fígado ficou seriamente afetado e agora ele tem que fazer um tratamento específico. Segundo André, hoje as pessoas com Aids não têm morrido de pneumonia como há alguns anos, mas de problemas no fígado ou nos rins. Parece cômico ? mas não é - ficar tomando por anos um remédio para salvar sua vida e esse mesmo remédio lhe matar.

Uma vez, há muito tempo, logo quando soube que era portador do vírus, um outro médico lhe disse que ele não viveria seis meses mais. Desde então André não consegue se programar para fazer nada que vá terminar ou começar seis meses depois. O tempo, para ele, ficou curto. Seu sonho é cursar uma faculdade, mas o medo de não terminar não permite que ele comece uma. "Quando faço um curso, escolho aqueles de curta duração. Um ou dois meses no máximo", lamenta. Em treze anos ele poderia ter se formado em pelo menos três cursos universitários.

André conseguiu aprender a conviver com o vírus, com a constante idéia da morte, e até com o preconceito. O que ele ainda não aprendeu foi conviver com o tempo.

Mais um pouco do meu relatório sobre o Fórum:

"De tudo que mais me impressionou no 3º Fórum Social Mundial, a forma como a diversidade cultural convivia em Porto Alegre merece destaque. No último dia de Fórum, era comum ver jovens carregando juntas duas bandeiras: de Israel e da Palestina. Também não se ouviam as tão comuns implicâncias com argentinos, um povo bem representado num Fórum realizado em Porto Alegre, tão perto de seu país. Diferentes raças e povos conviveram nesses dias em Porto Alegre e mostraram que um novo mundo, melhor e mais justo, é possível. De diferentes maneiras, todas aquelas pessoas presentes ao Fórum comprometeram-se, silenciosamente, a lutar por um mundo melhor. Comprometeram-se também a rezar pela paz, não importando se for numa igreja, num templo, numa sinagoga, numa mesquita ou num pagode."

Como alguns sabem, compareci ao 3º Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Tive que escrever um relatório sobre minhas atividades no Fórum para a ONG onde trabalho. Um pedacinho...

"No dia 24 de janeiro estive presente no painel "Como podemos assegurar a diversidade cultural e linguística?". O objetivo do painel era discutir iniciativas políticas que poderiam garantir o respeito pela diversidade linguística e cultural. Entre os painelistas, o de depoimento mais interessante foi um indígena mexicano. Um trecho: "Não quero projetos para que conheçam minha cultura. Minha cultura existe, eu estou aqui, estou vivo e sou realidade. Porém, quero projetos para que minha cultura continue existindo". Ainda no painel, muito se falou acerca de culturas que assumem posturas hegemônicas e consomem outras culturas. Culturas são dinâmicas, podem evoluir e até dialogar com outras culturas. Mas não podem ser exterminadas, como tanto já aconteceu com culturas indígenas. Todos os painelistas concordaram que os governos devem priorizar políticas que valorizem as culturas nacionais."