quinta-feira, setembro 11, 2003

A cidade e a cilada de Júlio Sarmento (parte 3)

(continuação do dia 09 de setembro de 2003)

- Posso lhe dar um abraço?

Pois bem, Júlio, você não estava num dia exatamente inspirado para se apaixonar. Estava bêbado, afinal. Em apenas duas frases ditas para a mulher que mais merecia apostos carinhosos no mundo, eu consegui soltar tolices. Nada de afagos, brincadeiras ou ternuras. Onde foi parar meu bom-humor? Onde estava aquele Júlio de outrora, cheio de si e confiante em seus galanteios? Eu estava certo que não deveria ter sido tão direto.

Ela apenas sorriu com minha pergunta. Foi seu primeiro sorriso, seu primeiro sorriso provocado por Júlio Sarmento. E então meu coração disparou e eu descobri que seus olhos associados àquele sorriso eram ainda mais inigualáveis. As bochechas coraram levemente, formando duas pequenas rugas no contorno da pele, bem abaixo dos olhos. E seu nariz, danado de metido, ficou ainda mais empinado. O resultado foi o surgimento de um esconderijo escuro para os olhos de Bia, seus fascinantes olhos que sabiam o quanto eram queridos e gostavam quando alguém sentia sua ausência. Ali, bem no centro de cada região ocular, só se via um brilho claro a ser perseguido.

Apesar de minha memória ainda fraquejar na recordação do instante exato motivador de minha paixão, lembro que foi o conjunto dos olhos com o sorriso que me fizeram ter certeza.

Ela, a Bia, concedeu-me seu abraço. Não como eu gostaria, apertado e quente, mas mesmo assim satisfiz-me por saber que ainda não tinha colocado tudo a perder com minhas idiotices. Respirei fundo e tentei conter minha excitação. Achei que o melhor seria não pular etapas novamente, e encaminhar nossa prosa para um conhecimento mútuo, extremamente importante para consolidar meus sentimentos e, talvez, provocar nela semelhante reação. Era como eu fazia quando tinha 18 anos e conhecia moças em bares na noite do Rio de Janeiro.

Beatriz Carvalho tinha 19 anos e completaria 20 ainda naquele ano, em outubro. Gostava de cinema, encantava-se com o Woody Allen, lia quadrinhos de super-heróis e sonhava ser o Batman. Garantiu-me que pouco consumia bebida alcoólica, a Bia, e que não fumava. Brincou com meu estado e disse que eu não deveria beber tanto. Ah, Júlio, seu arrogante, você estava tomando lições de uma menina de 19 anos, a única que tinha permissão para lhe dar a lição que quisesse.

Não, Bia, não quero saber o que você faz. Deixe-me continuar imaginando que você é advogada, música, ou uma multimilionária grega viajando pelo mundo. Também não quero saber se você está neste cortiço por falta de opção ou pela mesma curiosidade que me arrastaria para aí caso eu não fosse tão medroso. Deixe-me imaginar, doce Bia, deixe-me conhecê-la aos poucos para que minha paixão não perigue ser esgotada de uma só vez. Sim, eu poderia me iludir, mas a ilusão é real quando não existe realidade. E nossa verdadeira realidade, Bia, era a Lapa, a Joaquim Silva e chuva em frente ao cortiço. Só que, para mim, só eu e você existíamos.

Perguntei se ela queria caminhar um pouco à noite comigo. Ela me olhou com aqueles olhos ímpares e pensou. Eu sabia que este era o momento, o meu momento. Eu não tinha feito mais nada de errado, não havia pulado mais etapas. Eu só quis me manter curioso acerca de sua história, não poderia me negar aquela passeio por este motivo.

- Que tal, Júlio Sarnento, em vez do passeio, não subirmos para meu quarto que está mais quente e seco?

Meu nome é Sarmento, Beatriz Carvalho, Sarmento, não sarnento. Eu odiava quando me chamavam de Júlio, o sarnento, na adolescência. Olhem, vejam, lá vem ele, o sarnento. Malditos garotos que não tinham mais nada para fazer a não ser aporrinhar os outros mais tranquilos.

Ela sorriu com minha reprovação e então reparei que fizera a brincadeira de propósito, a danada. Mas não faça mais isso, Bia, não me chame novamente de sarnento, Bia, não você, não a mulher pela qual eu me apaixonei.

Quanto a sua proposta, eu sei que tentei pular etapas revelando de cara minha paixão, mas será que não estaríamos sendo um pouco precipitados? Tínhamos acabado de nos conhecer e ela já estava me convidando para entrar em seu lar, seu sagrado lar. Mesmo um quarto de cortiço pode ser considerado um lar. Júlio, pense depressa, ela não tem todo o tempo do mundo para esperar por sua decisão. Mas e Deus? O que Deus iria pensar se eu aceitasse?

(continua em breve)