sexta-feira, fevereiro 27, 2004

Vitor era um apenas um homem que tentava sobreviver até o dia de amanhã sem se ferir demais na batalha. Via a guerra se perpetuar no coração da cidade com seus olhos de bandeirante e registrava tudo num caderno de capa branca, pouco mais que um bloco de notas, em letras corridas. Ele sabia que o tempo vencia todas as infantarias, mas nunca havia sido capaz de derrubar um poeta.

Quando dava umas seis horas da tarde, Vitor amava Irene. Amava, suspirava e prometia virar um homem de bem. Irene preta, Irene rosa, Irene carregava a primavera dentro daquele sorriso e coloria o asfalto por onde caminhava, o sol segurava-se mais um tanto no horizonte e só se punha após a última brisa do perfume daquela margarida contornar a esquina e então o trânsito engarrafava, o garçom atrasava o chope, o feijão aguava, se tivesse que chover chovia e Vitor piscava os olhos e pedia a conta. Pagava a conta, apertava a mão do garçom seu amigo que acompanhava a seu lado nas arquibancadas da vida as indas e vindas do rubro-negro da Gávea, olhava por um instante o asfalto engarrafado de pessoas que se xingavam e ameaçavam o mundo de morte e pensava que sua Irene, e só a sua Irene, poderia fazê-lo sorrir diante da catástrofe. Eu amo essa nêga, ele repetia consigo enquanto caminhava através dos destroços.

Irene tinha alguma coisa que Vitor desejava, um não sei o quê, um verso por escrever, uma palavra não traduzida, um comichão no cotovelo esquerdo. O restante do mundo certamente saberia onde morava seu desejo na crioula, pois nem o garçom camarada disfarçava o olhar dirigido ao traseiro da moça, que caminhava na cadência dos bambas. A palavra bunda em si podia ser lida nos passos da menina, redonda, salamaleque, os passos marcando o ritmo da pulsação da platéia: bum, bum, bum, bum. Vitor conseguia enxergar além do desejo óbvio e devia exatamente por isso que havia se apaixonado por aquela mulher que ele não sabia se chamar Irene, mas bem que gostaria de saber.

Foi numa quinta-feira nublada que Vitor conheceu a voz e o nome de Irene. Estavam na mesma fila que não andava no banco e meia-dúzia de meliantes entrou na agência anunciando o assalto. Todo mundo no chão. Irene à sua frente tremia e chorava baixinho, talvez rezasse uma Ave-Maria, mas disso Vitor não teve certeza. Viu o rosto aflito de sua pérola e pôs a sua mão sobre a dela. Ficaram se olhando tentando entender os gritos que os cercavam. Meu nome é Vitor. Ela tremia menos. Meu nome é Irene. Vitor sorriu e repetiu consigo mesmo Irene, é um bonito nome Irene. Irene respondeu que foi a sua mãe quem escolhera Irene, mas não sabia direito por quê. E fizeram silêncio, as mãos dadas, o chão frio e o gerente de joelhos com uma arma na cabeça com pressa.

Irene disse então que estava com medo. Vitor lhe disse que era só não olhar para os bandidos que ela sairia dali viva. Vitor não disse que ela não precisava ter medo pois ele a amava demais e que não deixaria nada acontecer a ela perto dele. Irene não teve coragem para dizer que gostaria de tê-lo encontrado noutro lugar, numa hora em que pudessem deitar de mãos dadas longe da guerra que não fazia prisioneiros. O gerente disse que não sabia o segredo do cofre, que era tudo eletrônico, informatizado e à prova de homens. Alguém gritou que a polícia estava chegando, já dava para se ouvir sirenes e logo começaram os tiros. Irene fechou os olhos e Vitor a abraçou, não havia mais nada naquele mundo que valesse à pena.

Quando meia-dúzia de balaços lhe perfuraram o corpo, Vitor nasceu de novo. A sua Irene estava viva embaixo dele e da guerra. A sua poesia estava viva em seus braços e nunca iria morrer.

terça-feira, fevereiro 24, 2004

Em tempo. Vocês encontram o contraponto ao meu texto defendendo o Carnaval aqui, num texto feito segunda dia 23, pela Tami.

Meu Feriado Favorito

Eu adoro Carnaval, e acho que desde moleque. Deveria dizer a bem da verdade que eu gosto de farra e de cerveja, mas achar que o Carnaval se resume a isso é meio ingrato. O Carnaval é a mais humana de todas as festas, e eu não estou sozinho nessa opinião. O Jim Morrison, um bêbado habilidoso, declarou em sua entrevista à Rolling Stone que, diante dos Vietnams, das KKKs e dos Nixons onde vivia, seria muito bom que houvesse uma semana de completa festa onde as pessoas pudessem ser livres, como o nosso Carnaval. Ele também declarou que estaria interessado em tudo sobre revolta, desordem, caos, especialmente atividades que parecem não ter sentido. Enfim, alguém cuja opinião eu sou obrigado a respeitar, até porque o sujeito escreveu Roadhouse Blues e eu já tomei cervejas no café da manhã durante alguns carnavais passados.

O argumento preferido de quem discorda de mim é que o Carnaval aliena as pessoas. Eu acho o contrário, que o Carnaval é uma chance fantástica de se tomar contato da realidade do próximo – até porque o próximo do carnaval pode ser qualquer um. É só reparar que nos seus melhores carnavais você provavelmente conheceu uma penca de gente que, numa situação normal, você iria ignorar. Ignorar não é do carnaval, ignorar é do dia-a-dia. E eu aposto que a maioria de vocês seis que lêem isso aqui já brincaram Carnaval e repararam que uma grande diversão das pessoas na festa é a crítica de costumes. O Carnaval abre um espaço para esta crítica aberta da sociedade, que vem revestida de humor, porque a folia põe nas ruas gente de diversas classes sociais.

O Carnaval funciona como um espelho do homem. Mesmo que seja um espelho invertido, ele não deixa de ser sincero. A festa abre espaço para a gente brincar de ser gente de verdade, sorrir de verdade. Esse pra mim é o grande barato do Carnaval: são 5 dias onde você se fantasia para viver você mesmo como gostaria. Nos 360 dias restantes do ano, a pessoa se traveste de si mesma para respeitar as leis, ser eleito funcionário do mês e acreditar que um telefone celular que tira fotos resolve muita coisa no mundo. No Carnaval, o grande barato é ser feliz. As pessoas se lembram de como pode ser fácil sorrir e conviver. Mesmo o sentimento amoroso deixa de ter um aspecto de posse. Eu lembro de como era fácil bater papo com qualquer um a qualquer hora quando eu estava em Ouro Preto. Eu lembro de como a menina sorriu sábado passado na Lapa quando eu passei por ela e deixei um beijo, só porque eu tinha gostado de vê-la ali. Se eu fizesse isso na semana passada, eu poderia até ter apanhado. Mas era carnaval, e era só um beijo.

A Revolução, com R maiúsculo, vai começar numa quarta-feira de cinzas. Um dia as pessoas não vão querer mais se travestir de si mesmas. Olê, olá.

domingo, fevereiro 22, 2004

Não sou muito fã de postar coisas velhas. Este pequeno ensaio foi feito em março passado, provavelmente durante um após-bebedeira. O dia que eu descobri que beber me ajuda a escrever eu descobri a minha ruína. Hehe.

PEQUENO ENSAIO SOBRE A SAUDADE OU A RESSACA OU ALGO QUE EU DESCOBRIREI ENQUANTO ESCREVO

Existem manhãs que não poderiam deixar de anoitecer. Elas adentram em nossos corpos tímidas e refrescam cada subterfúgio do sono e da preguiça com perfumes distantes do nosso travesseiro. Os olhos despertam tardios e os sons demoram a chegar e a sair em nós, ficamos como em suspenso num poema parnasiano com charme de cinema mudo. A primeira coisa que se percebe é um gosto estranho que inunda a garganta e transborda pelos lábios. Se for domingo, melhor ficar na cama aproveitando o momento.

Essas manhãs costumam ser melhor aproveitadas e curtidas na individualidade de cada um. Na individualidade de cada nós. Na respiração pausada, naquela ereção incontinenti que acorda com cada homem ou menino, na fresta de sol que ousa escapar pela persiana falha, no corpo próximo que ainda ressona. Podemos ser mínimos então, nos conter ao que apenas interessa a nós, sem interessar a mais ninguém.

Essas manhãs acabam por valer todo um dia, ou um mês, ou um ano, ou um amor. O resto do dia será apenas dia como todos os dias, não se iluda, ao acordarmos teremos algo ou alguém que independe de nossa boa vontade para acontecer, e, desde que o mundo é mundo, algo ou alguém sempre acontece durante o dia - querendo nós ou não.

Engraçado me dar conta que a nossa vida continua seguindo em frente, independendo de nós. Morrer não significa terminar. Separar não significa esquecer. Um sorriso não significa alegria.

sexta-feira, fevereiro 20, 2004

Michelle tinha os olhos acinzentados e gostava de estar por cima quando gozava. Então ela me oprimia o peito e mergulhava em meu derradeiro suspiro, antes de se adornar sobre mim e cantarolar versos do Chico para finalmente dormir. Nunca repetia os versos, pelo não enquanto sobre mim. O sono nos abraçava suado e nu, o Rio, cidade maravilhosa, é antes um lugar quente. Eu lhe compunha sonetos que nunca eram mostrados nas horas mais folgadas do serviço, razão pela qual era conhecido entre a camaradagem como Poeta. Havia ganho um exemplar bonitão dos Lusíadas natais passados por obra e graça de meu pai e, para impressionar o velho, quis ser o Camões de minha própria armada. Impossível esquecer os olhos dele diante do soneto que fiz para as suas bodas de ouro, aquele longo abraço, aquele longo sorriso, aquela longa mudez, aquele longo gole de Balla 12.

Eu usualmente saía de casa para o serviço em horários ingratos. A cabritinha não se apoquentava porque as contas eram todas pagas e eu, modéstia a parte, me fazia presente quando necessário. Michelle só exigia um beijo de despedida e pouco barulho para que ela não despertasse. Eu partia em passos de bichano no meio das trevas do nosso quarto, tão desnudas quanto a minha pequena dama. No verão, eu era capaz de farejar o cheiro dela em cada canto do apartamento, o animal dentro de mim despertava e fazia o corpo funcionar melhor, talvez na tensão de respirar novamente Michelle.

O meio-período de expediente na oficina de Lopez, um chileno tão gordo quanto gago, era apenas uma grande vitrine para justificar o sorriso de sua esposa e filhotas nas colunas sociais. Pedro Lopez, El Abufo, como era conhecido desde magro, operava uma vasta rede de serviços contraventivos dedicados às pessoas de bem, capazes de bancar pequenas extravagâncias pelo prazer ou necessidade do proibido. Cassinos, narcóticos raros, virgens, transplantes urgentes e outros atrativos que incluíam até rituais satânicos eram passíveis de negociação com o gago que aceitava Visa e Mastercard e parcelava suas benfeitorias em até cinco vezes dependendo do cliente. A despeito de um cacoete quase inconsciente de resgatar o gestuário de Marlon Brando e demorar em demasiado para proferir períodos verbais curtos, Don Abufo não dava margens para naufrágios em suas empresas, fossem elas lícitas ou não. O homem era um capitalista por natureza.

É aí que apareço na coisa toda. Mas não sozinho. O chileno tinha sob suas ordens seis hombres de confiança para fazer o serviço sujo, sus perros, como nos chamávamos. Alexandre Nariz, Vinícius Bito, Fábio Bebê, Pedro Hormônio, Orlando Grind e eu, o Poeta. Assim como eu ganhava a vida como subgerente de relações na oficina especializada em carros alemães, um emprego com um belo título, bom salário e poucas ocupações dentro de um horário flexível, os demais perros possuíam rotinas semelhantes. El Abufo facilitava a vida de seus cães de guarda. Bito, o melhor de nós, tinha inclusive seu talento reconhecido como como romancista nas horas ímpares. Operávamos em duplas ou trios, semanalmente, em geral achacando devedores ou tratando assuntos menos sociáveis com os fornecedores. Daí a ingratidão do horário de trabalho.

O hábito de respirar a madrugada nos facilitava a viver como fantasmas da noite. Na maior parte do tempo, estávamos esperando. Alguém, algo, uma porta, um sinal fechar, um grito. Era a pior e a melhor hora do serviço porque, em última instância, éramos matadores profissionais. Insones. Eu cheirava a lembrança de Michelle, sua carne cheirosa de morder e delirava sonetos. Tinha me habituado a escrever em carros obscurecidos e diante da troça dos demais. Conversávamos para passar o tempo e não matarmos uns aos outros. Atirar em alguém, seja quem for, é algo sujo. Envolve sangue, pólvora, barulho, vísceras. De forma que o ideal era assustar a alma infeliz que atrasava a vida do gordo para que ela se conscientizasse que o melhor era resolver a sua parte sem mais delongas.

O coração de minha garota pulsava no interior de cada projétil que eu alojava pacientemente no pente da minha automática. Hormônio tragava seu cigarro cantarolando uma música natalina e Nariz reclamava ao volante. Esse filho da puta me deixou esperando dez minutos na outra esquina porque tem vergonha de cagar na casa da namorada. Precisou usar um boteco fedido. Verme. Ele ria, o Hormônio. Eu acompanhava a risada. Michelle ficou me olhando sair pela penumbra, coisa que não fazia. Pediu que eu voltasse para ela quando resolvesse o serviço, beijou e mordeu meu lábio. Sangrava um pouco, mas eu gostava da sensação. Era como se ela fosse uma ferida aberta em mim, poeticamente falando. O carro encostou e nos pusemos a esperar. Hormônio apagou o cigarro e disse que um homem tinha que ser muito sujo para usar a casa da namorada na hora de fazer merda, e ele era um homem limpo. Nariz voltou a praguejar, eu guardei a arma no coldre. Era janeiro e eu podia ouvir a respiração sonolenta de minha Michelle no outro lado da cidade.

O carro que aguardávamos estacionou no quarteirão em frente. Foi rápido e barulhento; Nariz arrancou na direção do alvo e estacionou ao lado, ela pulou em meu pescoço feito naja, eu e Hormônio descemos engatilhados e rendemos o velho. Hormônio perguntou se ele tinha o dinheiro mas um gato havia comido a língua dele. Eu a joguei na cama e o animal fez o resto. Ela me olhou e não recitou nada de Chico, perguntou se eu estaria embaixo dela quando ela despertasse. Eu disse que era um homem que devia obediência a outro homem, e que só ele poderia mesmo responder àquela pergunta. Ela sabia onde eu guardava a arma e adormeceu olhando para o lugar com pequenas lágrimas. Ele provavelmente se borrou todo outra vez, disse Nariz já com o velho no banco de trás sendo extorquido. O velho era um ex-jogador de futebol que precisava do pôquer na sua vida. Costumava perder e demorar a pagar, razão pela qual alguns de nós já o conhecíamos. Dessa vez havia se estropiado de outra maneira. Não havia perdido no jogo, mas resolveu inventar de armar uma sacanagem em sua casa de praia com seus amigos de concentração, e pagou adiantado por garotas e garotos acompanhados de alguns quilos de pó. Claro que ele e seus amigos meteram os pés pelas mãos, do contrário, estaria agora ninando Michelle e não o ameaçando com uma arma.

Ele nada dizia, mas uma das garotas não tinha voltado da festinha e os garotos estavam todos com queimaduras nas costas. El Abufo teve que pagar o prejuízo e agora queria o débito. Ou el viejo muerto, disse com fúria nos olhos. O animal rosnou em minha língua, si, señor, muerto. Mas ele nada disse, apenas se borrou todo quando o raptamos. A viagem até um local ermo para que ele fosse desaparecido foi longa e fedida. Pusemos o velho para cavar a própria cova, um último recurso funcional. Ninguém que se preze quer a morte e nós, matadores, preferimos não matar. É difícil explicar, mas tem algo na morte que te mata aos poucos. Você sente a contagem chegar mais próxima da sua vez e nós, particularmente, adiantávamos a contagem. Vocês sabem, a vida é uma grande roleta russa. O velho cavou e nada falou ou implorou ou cedeu. Hormônio e Nariz observavam e eu, que iria matá-lo, rabiscava outro soneto para amansar a fera que se atiçava entre cada verso. Sangue e fogo. Ajoelharam-no e fui ao trabalho. Encostei a arma na testa do homem e ele não fechou os olhos, não gritou, não saiu correndo. Não derramou uma lágrima. Que diabos? Olhei fundo nele e engatilhei. Ela me mordeu até arrancar um pedaço, por isso arranquei um pedaço dela também, a puta. Devia ter doído no velho. A fera rugiu e partiu a cabeça dele em duas, o sangue me sujou todo, sujou até os lençóis onde Michelle e seu sexo me esperavam. Eu a via com suas madeixas de trigo na cova, dali a pouco a madrugava amanheceria. Sobravam algumas horas de sono na minha garota.

É verão, pensei enquanto o enterrávamos. É verão, ela vai levantar mais cedo e montar sobre mim novamente. Talvez ainda estivesse acordada como estava quando fechei a porta felinamente, o animal que ela ama não a deixa dormir. Iria dar o bote assim que eu entrasse no quarto. Seria uma longa noite aquela.

sexta-feira, fevereiro 13, 2004

Olhou São Paulo pela janela e parecia quase Veneza, a tal cidade que desaparece um centímetro a cada década por conta da água. Não poderia ser tão ruim, sempre sonhara em visitar a cidade-postal italiana, andar de gôndola e inflar seu ego com o sentimento de que estivera ali, no mais belo dos desfortúnios. Vingaria seus pais por tabela, que não puderam ver as Sete Quedas por conta do Brasil Grande do General Geisel. Teria em seus olhos as sombras de uma cidade morta, quase um museu, mais que um santuário.

A chuva, que havia fraquejado durante a noite, voltou a falar grosso. Tinha a impressão de poder ouvir as águas milhas distantes, o céu havia escurecido e relâmpagos riscavam os corações embebidos de súplicas daquela quase Veneza que chafurdava em maus inventimentos na sua rede de drenagem e esgotos. Aquela cidade, tão metrópole, estava à mercê de reações físico-químicas ou, como diria seu vizinho batista, da ira do Divino. Percebia o calçamento da sua rua se diluindo na chuva, a água tomando posse do local e das pessoas, erodindo a capital.

Havia um certo senso de ironia naquela situação. Pobres e ricos igualmente ilhados em esquinas ainda não tragadas pela chuva, havia mesmo aparecido na tevê dois homens que se alojaram no teto de um desses carrões importados na espera da água baixar ou do socorro aparecer. Decerto que os mais bem nascidos estavam melhor abrigados em seus bairros e condomínios fechados, mas a verdade é que a cidade castigava de mesma forma quando podia, sem distinção de classe. Ademais, a mídia não cansava de noticiar, o Sertão estava virando mar como haviam anunciado em priscas eras, as chuvas também desgraçavam a vida severina. Aquela São Paulo tão nordestina também se inundava e, até onde os olhos de Marie vislumbravam naquele aguaceiro que fazia da rua um córrego, ser Matarazzo ou Simonsen não estava muito distante der ser Nazário ou Silva; a solução era olhar o céu e arregaçar as barras das calças.

Reparou que Noel estava acordado pelas notas carinhosamente dedilhadas no violão. No minuto seguinte, lembrou-se que era esposa e futura mãe do filho que esperava daquele negro que rabiscava um sambinha de Jorge Ben para a alegria daquela manhã. Ficou sabendo da gravidez não tinha nem duas semanas, e ainda não sentia nada de especial na maternidade, se bem que o feto ainda devia ser um mero caroço dentro dela. Assim que recebeu a notícia da gravidez, decidiu que não contaria para Noel até ser inevitável. Precisava ter certeza de que queria ser mãe do filho dele, aceitar que pertenceria àquele homem para dali em diante. Noel deixou a viola entre os lençóis e caminhou até Marie, diante da chuva e da cidade que se afogava. Ele estava de folga. O temporal inviabilizava o funcionamento da reparticão pública onde assinava o ponto como fiscal, emprego que lhe garantia um bom sustento. Beijou-a para desejar um bom dia e deixou seu corpo estacionar no corpo amado, com a sensação da carícia em suas mãos repousadas no ventre dela.

Noel sabia que Marie pouco falava e que ela se comunicava com o mundo usando mais o seu corpo do que suas palavras. Gostava desses mistérios que sua garota tinha. Foram vizinhos no mesmo prédio por dois bons anos antes de suas bocas se encontrarem num elevador notívago. Casaram-se havia já três meses no civil, meio clandestinos, porque a mãe de Marie não suportava a idéia de ser avó dum tiziu. Marie dava aulas de literatura numa escola particular pela tarde e às terças de noite era professora voluntária de filosofia numa escola pública que ficava em seu quarteirão. Marie pensava que a filosofia também estava sendo levada para o brejo junto de carteiras e livros e lodo. Talvez alguns dos alunos fossem deparar com a filosofia no meio do entulho depois daquele caos e coçariam a cabeça, entreolhando-se, e que diabos faremos com esse monte de pergunta agora? Tudo, ela responderia geniosa, tudo menos retórica.

Marie acariciava Noel e suspirava outro homem. O outro estava do lado de fora, bem abaixo do seu quinto andar, longe dela. E aquela chuva já durava quase uma semana, a metrópole doente, as aulas interrompidas, ele desaparecido. Era um de seus alunos, homem feito de seus vinte anos, pai de duas crianças e precisando de diploma de segundo grau. Como arrumava tempo para Platão ela também gostaria de saber. Charles, ele se chamava Charles e era mais que um amante que lhe esbofeteava o rosto e as ancas durante o intervalo das aulas, era uma transgressão em carne viva. O destino, ou a mão de Deus, ou o ocaso que freqüentam literatura barata e até gols da seleção portenha de futebol, pôs a impaciência física de Charles nas mãos de Marie menos de doze horas após as serenatas de Noel.

Mesmo sem ver, ela podia sentir o amor que tomava conta do negro junto a si. E, de súbito, não gostava da sensação de ser, ela também, parte integrante de Noel. Ele haveria de conseguir a recíproca um dia destes, talvez até já houvesse conseguido, e ela temia. Por isso, calava aquela criança que Noel acariaciava inocente. E torcia em silêncio para que ela não fosse dele, passaporte para a sua fuga daquele temporal que a deixava ilhada dentro daquele apartamento, nos braços daquele Noel.

segunda-feira, fevereiro 09, 2004

Neil é um homem velho, seus cabelos estão caindo, suas feições estão cansadas. Ele olha para a câmera e você sente do outro lado que as palavras não serão suficientes para o velho descrever a experiência de subir num palco para tocar suas músicas há mais de 25 anos com a sua banda por excelência, a Crazy Horse. Num dado momento, ele diz que a banda se comporta de fato como um cavalo louco: cada reação que ela produz é totalmente inesperada.

Dá gosto ver o velho empunhando a sua Gibson Les Paul preta, encurvado sobre ela e produzindo a maior distorção possível junto de seus bons companheiros da Crazy Horse. Para quem se enquadra na categoria "fã de rock", quase uma doença e certamente um vício, só a imagem dos coroas batendo cabeça sobre um tablado já emociona. Para quem é fã de rock e já presenciou a Crazy Horse a olho nu, perto deles e de outros doentes musicais, não é difícil entender porque Neil sente-se quase impotente diante do entrevistador ao tentar definir tantos sentimentos com seres quase físicos que são palavras. E de pensar que tem gente que escuta coisas como Coldplay e Emerson Nogueira e acha que é rock.

É aí que reside a graça de “Year Of The Horse”, do diretor Jim Jarmusch. O filme gravado (orgulhosamente) em Super-8, vai além do registro documental. É praticamente um abraço, um beijo, um agradecimento a Neil e seus cúmplices Frank "Poncho" Sampedro, Billy Talbot e Ralph Molina. Entre a banda apresentando clássicos ao vivo como "Tonight's The Night", "Sedan Delivery" e "Like a Hurricane", aparecem registros em vídeo compilados entre 76 e 86 com camarins e bastidores do Crazy Horse, depoimentos da banda, de seus roadies e mesmo do pai de Neil. Danny Whitten, guitarrista original da Crazy Horse morto por overdose de heroína em 74, é lembrado com emoção pelo batera Ralph Molina. Uma lata impagável de Skol Lager (!!) aparece junto de um baseado num backstage dos anos 70. Sampedro, que cativou meu coração roqueiro durante sua performance insequecível em "Fuckin’ Up" no Rock In Rio 3 (saudades), sacaneia o diretor Jarmusch, o próprio Neil e conta piadas de bateiristas para o batera num quarto de hotel. A câmera de Jarmusch empresta um grau de humanidade aos velhinhos que você, mero mortal, só poderia conseguir sentando-se com eles para desgustar uma gelada – algo pouco provável uma vez que Neil não é exatamente um sujeito social. Então, aproveite: o DVD sai por 10 pratas nas Americanas.

Quando os últimos gritos de uma devastadora "Like A Hurricane" ecoam pela tela, a impressão que se tem é de que você vai ficar com saudades daqueles coroas. Eles sobreviveram a mais de trinta anos de rock and roll. Teve gente que não segurou a barra nem trinta dias. O velho Neil e seus Cavalos Loucos continuam de pé, porque é melhor queimar de uma vez do que se apagar aos poucos.

quinta-feira, fevereiro 05, 2004

Antes de escrever sobre Cidade de Deus, vou escrever umas coisas sobre o Clube de Regatas Flamengo, meu time de coração. Este camisa 10 chamado Felipe deveria, antes de ser convocado, ser beatificado em Roma; o camisa 1 chamado Júlio César poderia ser mantido no time; já o restante da foto, podem desovar. Vivos.

Cidade de Deus foi indicado para o Oscar em quatro categorias, para a alegria dos cadernos de cultura dos jornais deste país. A saber: melhor direção, melhor fotografia, melhor edição e melhor roteiro adaptado. Além de tornar a transmissão do evento mais divertido em nossas televisões (teremos o Zé Wilker, o Rubens Edwald Filho e o Jabor se comportando que nem o Galvão nas corridas do Senna) e servir para cinéfilos trocarem mais e-mails e consumirem mais cerveja, a notícia das indicações para CDD fez justiça com o filme brasileiro mais notório desde a chamada retomada. Eu, particularmente, vibrei com o fato do banal Carandiru ter ficado de fora, mas isso é outro papo.

Quem leu o livro (muito bom, autoria de Paulo Lins) que dá nome à película, sabe que o filme não retrata tão fidedignamente a estória narrada. Porém, personagens e o ambiente do livro são muito bem enquadrados na tela por Fernando Meirelles, o diretor e também co-roteirista de CDD. Quem não viu o filme (herege!) tem a chance de não ficar boiando na próxima mesa de bar em que sentar a partir do próximo fim de semana, quando o filme volta a entrar em cartaz em nossos cinemas. Eu, assumidamente fã da fita, pretendo revê-la assim que der.

Lógico que as indicações ao Oscar não dependem apenas de talento de diretores, editores, atores e demais coadjuvantes. A Academia representa Hollywood, e Hollywood, meus caros, representa $uce$$o. Grana, bufunfa, bala na agulha. A produtora ianque Miramax encampou o filme e se encarregou de promovê-lo, para dar mais visibilidade a seu produto. Mesmo que nenhuma das estatuetas douradas venha aportar em terras tupiniquins para fazer companhia à Taça do Mundo, podem apostar que CDD vai arregimentar mais outra pequena montanha de dinheiro sendo exibido, pelo menos, na Matriz e na sua Filial tropical.

Ocorre que CDD, além de ser um produto comercialmente redondinho, é um puta filme. Ou, melhor dizendo, é um produto comercialmente redondinho por ser um puta filme. Sua fotografia e edição, ambas indicadas, fazem perfeitamente jus ao prêmio, se for o caso. São tão ágeis que chegam a ser orgânicas. O filme pulsa, ajudado pela trilha sonora infernal e uma tensão constante entre personagens e platéia, especialmente num cinema alocado no Rio de Janeiro. Fernando Meirelles merece a indicação (a estatuaeta eu daria para Peter Jackson e Clint Eastwood) como diretor, pois amarrou seu roteiro ao livro e deu identidade própria ao filme, que de quebra caiu no imaginário popular pelo linguajar brasileiríssimo (carioquíssimo, sendo mais sincero) de seus populares – impossível ficar impassível diante da pérola "paulista nenhum pode ser um cara maneiro" ou esqucer o chavão "Dadinho é o caralho, o meu nome agora é Zé Pequno, porra!".

Verdade seja dita, paralelo a CDD, o diretor Beto Brant (o melhor do Brasil, deixa eu também inventar meus dogmas) lançou o seu O Invasor, com a pecaminosa Mariana Ximenes e o impagável Titã Paulo Miklos, um filme que trata basicamente do mesmo tema que a fita de Meirelles, a violência e o crime, mas de forma muito mais incisiva, muito mais inteligente, muito menos inocente e que pra sacramentar apresentava a Malu Mader de coadjuvante. O que eu penso é que o fato de O Invasor ser excelente não invalida a também excelência de CDD. São dois filmes, cada um tratando o tema a partir de olhares distintos e válidos. Disseram também que a violência por horas excessiva em CDD (que apresenta um final feliz, surpreendam-se) era espetaculosa, para inglês ver, surreal. Discordar eu não vou, mas recomendo a todos que leiam o livro após ver o filme.

Resta agora saber se Knockout Ned & cia. também serão derrotados pela Sociedade do Anel. Seria uma pena.