A cidade e a cilada de Júlio Sarmento (parte 1)
Depois de até ter perdido a conta do tempo que não me encontrava com uma mulher na cama, naquele fim de agosto quase aconteceu. A noite do Rio de Janeiro às vezes gratifica com boas surpresas aqueles que lhe fazem companhia em sua solidão. Era sábado e fiquei caminhando pelas ruas desertas da Lapa. Chovia, Deus, e como chovia! A Mem de Sá estava ligeiramente alagada e eu não tinha levado minhas galochas. Só que eu não era mais criança para ficar me preocupando em molhar os pés. Tinha 24 anos, chamava-me Júlio Sarmento e era um adulto. Júlio, você não é mais criança, pode pegar chuva sem o perigo de tomar uma surra de sua mãe quando voltar para casa. Mas meu tênis vermelho ficou ensopado.
A Mem de Sá deve ter sido obra do Pereira Passos, quase todas as obras antigas da cidade foram realizadas pelo Pereira Passos. Mas não os Arcos da Lapa. Antigo aqueduto, os 42 arcos de alvenaria foram construídos no século XVIII. Ligam o morro de Santo Antônio ao bairro de Santa Teresa.
Uma vez eu andei pelos arcos a pé. Parei meu carro ali perto do Largo das Neves e esperei passar um bonde. Fiquei uns bons minutos contando o tempo entre um bonde e outro e espreitando os policiais que guardavam a passagem. Como eu era esperto, era Júlio Sarmento, o esperto! Os guardas se distraíram, tinham que se distrair com a mulata que passou agarrada ao bonde, e eu corri. Devo ter conseguido chegar até o vigésimo arco antes do policial barrigudo me ver e gritar. Fiquei com medo e voltei. Ameaçaram-me de prisão, os malditos guardas, mas me liberaram por uma nota de dez. Uma pechincha, isso que foi, pagar 10 reais para andar por cima de 20 arcos. Júlio Sarmento, o esperto.
Eu já estava de porre com as dúzias de cervejas tomadas na Rua Joaquim Silva. Chovia, sim, mas sempre há ambulantes vendendo cerveja na Lapa. Tomei também um rabo-de-galo num botequim qualquer para espantar o frio. Deus, até hoje lembro do sabor quente daquele rabo-de-galo. Foi o melhor da minha vida, o único que não teve gosto de remédio. Passei minha juventude tomando rabos-de-galo num boteco sujo nos intervalos de minhas aulas no São Bento. Eu queria ser contraventor. Usava uma calça cinza e uma blusa azul, ia à missa aos domingos, estudava num colégio católico onde só havia meninos, assistia às aulas calado e queria ser contraventor. Durante o recreio eu ia direto para a Praça Mauá, no chamado Boteco da Praça, o mais sujo, o mais fedorento, e pedia um rabo-de-galo. Quantos anos você tem? Júlio Sarmento tem 18 anos, lógico. E o velho turco me servia. Tomava só um, mas já era um contraventor. Eu, Júlio, menor de idade, o contraventor.
Depois arrependia-me, sempre, de ter tomado o rabo-de-galo. O que você fez desta vez, Júlio? Pequei, D. Tadeu, cometi um pecado imperdoável, estou arrependido, espero que não tenha sido um pecado mortal, D. Tadeu, quero me confessar, imploro pelo perdão de Deus, D. Tadeu. Júlio, eu te absolvo de seus pecados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Mas isto acontecia na minha infância quando eu ainda tinha fé. Eu sei, eu sei que às vezes minha fé voltava para questionar minhas atitudes, mas não naquele sábado. Não por aquele saboroso rabo-de-galo.
Desci completamente alcoolizado da Joaquim Silva em direção ao Largo da Lapa e os arcos naquele ponto, encostado aos muros da Fundação São Martinho, tinham um cheiro enjoativo de mijo e fezes da população de rua. Nem a chuva amenizava o cheiro. E como chovia. Meu estômago embrulhou, sentei na sarjeta próxima àquele fedor e vomitei o rabo-de-galo e as cervejas num bueiro qualquer. Um perdedor, Júlio, você era Júlio Sarmento, um perdedor. Seria mais um típico dia de perdedor, aquele sábado.
Minha boca fedia a vômito e eu comprei outra cerveja numa barraquinha de cachorro-quente em frente à casa do Tá na Rua. Comi observando a molecada no Largo da Lapa cantando, gritando, brincando, rindo na chuva. Eram jovens sem um lar. Nesta hora eu enxerguei que a lembrança de minhas galochas havia sido especialmente cruel. Eles eram crianças brincando na chuva descalços, sem lares e sem casacos, e eu me preocupava com meu tênis vermelho ensopado. Senti-me péssimo, como se tivesse cometido um pecado mortal. Rezei a oração mais difícil que sabia em latim, Salve Rainha. Salve Regina, mater misericordiae; vita, dulcedo et spes nostra, salve. Eu tinha que me redimir daquele pecado mortal. Eu não era mau, tinha perdido a fé de minha juventude, mas não era mau.
Quis sair dali em direção ao Capela, mas a Mem de Sá continuava ligeiramente alagada. E, mesmo não me importando mais em molhar os pés e pegar um resfriado, eu ainda podia tomar um choque com alguma fiação subterrânea revolta naquela chuva. Achei melhor não arriscar e voltei para a Joaquim Silva, mas desta vez evitei passar pelo fedor dos arcos e subi pela Travessa do Mosqueira.
continua em breve...