A cidade e a cilada de Júlio Sarmento (parte 6)
(continuação do dia 23 de setembro de 2003)
A música acabou e Bia ficou parada me encarando. Provavelmente ela estava pensando o quão boba havia sido em ficar dançando ali na frente de um desconhecido - que a amava, sim, mas ainda um desconhecido. Passara a pensar, minha Bia, que eu iria rir, gargalhar, fazer pouco caso de sua dança. Com certeza estava envergonhada e achava que tinha sido sapeca demais e que eu, cinco anos mais velho, não havia gostado de tanta meninice.
- Por que você também não dançou?
Ah, Bia, como você partiu meu coração com esta pergunta. Sua voz mal foi projetada para fora da boca, tinha um ou dois tons mais baixo. Sua sobrancelha se inclinou, uma tentou ir de encontro a outra. E você fez um bico de tristeza com a boca, sua linda boca que eu queria beijar, não decepcionar. Desculpe-me, não era minha intenção magoá-la. Júlio Sarmento a ama demais para lhe causar qualquer mínima dor. Não foi de propósito, Bia, eu juro!
- É que eu não sei dançar.
Droga, Júlio, não bastariam todas as besteiras já ditas naquele dia, você ainda tinha que soltar mais uma. Nem uma palavra bonita, nada para confortá-la, apenas uma seca negação de perícia na dança. E ainda mentira, seu idiota. Eu era um exímio dançarino, assim como fora minha avó, professora de tango por 30 anos numa famosa academia de Botafogo. Como eu me odiava quando meu machismo simplesmente me impedia de dizer coisas bonitas. E ainda havia o álcool que circulava pelos meus vasos sanguíneos, principalmente os da cabeça.
Bia saiu de minha frente, desvirou um dos pés do tênis preto que caíra de cabeça para baixo, e trocou o cd. Colocou Cartola. Abriu o armário e pegou uma bonitinha lata. Era decorada na forma de um prédio de tijolos verdes com várias janelas rodopiando o primeiro andar e uma loja no térreo: the sweet & candy shop. Tinham até duas crianças vestindo roupas de adultos e olhando para a vitrine. E a tampa da lata era o telhado do prédio.
- Você fuma, né?
É óbvio que eu não fumo, Bia. Cigarro faz mal à saúde, meu tio morreu de câncer no pulmão aos 46 anos e eu não seria tolo para virar fumante com esse exemplo de desgraça na família.
- Não, mas você havia me dito que também não fumava...
Bia abriu a lata e tirou de dentro um saquinho com erva. Era maconha. Minha Bia realmente não fumava alcatrão, nem nicotina. Ao invés disso, fumava maconha, a erva de Satã, uma ilegalidade. Ah Deus, o que eu deveria fazer a partir de então que eu descobrira que a mulher, a menina, a minha menina, a mais encantadora que eu já havia conhecido era uma maconheira? Fumar maconha, sem chance de apelação, era um pecado mortal. E dos mais graves, com certeza. Nunca, Júlio, nuca use qualquer substância que faça com que você perca sua razão, nunca use nada que domine suas ações. Ah, D. Tadeu, eu já me comportava como um alcoólatra em certas noites depressivas e naquela me vi diante de maconha, me vi tentado por um dos piores pecados mortais pelos quais o senhor me alertava.
Meu coração, acelerado por paixão, aumentou ainda mais o ritmo pelo nervosismo. Ao mesmo tempo, ela, a Bia, tranquilamente espalhava a erva por uma tira de papel fina, esticada em cima da cama. Enrolou, então, o papel em torno da erva, passou a língua numa das laterais e juntou os dois lados. Usou um prendedor de cabelo para pressionar a erva para um dos cantos, com cuidado para não deixar cair, e amaçou com seus lindos dedinhos, o indicador e o polegar, o outro canto. Ali estava um cigarro de maconha. Para mim, aquele processo durara intermináveis segundos, mais até do que o infinito momento em que eu a vi, a Bia, pela primeira vez na porta do cortiço. Eu estava agoniado.
Ela simplesmente pegou uma caixa de fósforos no criado-mudo, sentou-se na cama e acendeu o cigarro de maconha. Aspirou fundo a fumaça e fechou levemente os olhos enquanto aspirava. Mas não eram mais aqueles olhos cerrados pela composição das bochechas e do sorriso que tanto me agradavam. Ainda eram claros, sim, os olhos, mas não eram tão apaixonantes como antes. Só que ela ainda era a Bia, a minha Bia.
- Sua vez. Você quer?
(continua em breve)