terça-feira, novembro 30, 2004

Abriu o envelope com cuidado, não era uma carta qualquer, ela jamais lhe escreveria cartas quaisquer. Saiu de soslaio num domingo de madrugada, como se fosse um bandido e pretendeu a ilusão de deixar o quarto dela e toda a casa onde morava como se ele jamais houvesse estado ali meses. Fugiu sem aviso, havia chegado de pára-quedas e achou tudo muito certo, por que não? Ela tinha o sono pesado e ele tinha o passo leve, foram um casal perfeito na aparência.

Seus passos de plumas deixaram pegadas pela sala, pelos banheiros, entre jardins como se todo o chão onde ele pisasse fosse neve, fosse leve e ele pesado. O sono pesado dela se desmanchava no ar por conta da insônia e ali, ela lhe escrevia, escrevia sobre a ausência dele, a impossibilidade daquele mundo que desconstruíam. Pela manhã, sorriam. Nem ouvi você chegar, menino. Não quis te acordar, linda. Mentiam.

Foi já na rua, as suas coisas em um par de malas que percebeu o envelope no bolso do casaco. Idiota, se perguntou como diabos ela sabia. O crime perfeito é aquele que não se comete, deveria ter aprendido a um bom tempo atrás. Então leu a carta debaixo de um poste de luz. Eram poucas palavras, mas viu que ela não temera, não tremera, nem ao menos errara na concordância.

Caminhou pesado rumo à estação ciente de que deixava atrás de si um sono leve.

sexta-feira, novembro 26, 2004

Ela disse namoro ou O que a Anna Scott tem a ver com isso?

Gente, finalmente relançaram o DVD de "Um Lugar Chamado Notting Hill". Em poucos dias deve chegar aqui em casa, junto com mais um livrinho do Paul Auster - sim, Luis, eu sei, foi você que me apresentou para ele há alguns anos - que eu pretendo ler assim que melhorar.

Minha gripe, como muitos sabem, simplesmente não passa. Tenho febre à noite e aquele catarro verde musgo fica arranhando minha garganta o tempo todo. É claro que eu não tenho me cuidado como deveria. Ontem eu simplesmente enchi a cara na Lapa e fiquei gritando para uns travestis que eles eram muito lindos. Gritava e batia palmas. Olha só, você está de parabéns por essa bunda. Uma vergonha. Mas as bundas realmente eram impressionantes. Um dia eu espero poder encostar numa daquele tamanho.

Então resolvi que não vou voltar a beber e cair na farra até que eu esteja 100% curado. Agora mesmo, depois de ter um dia razoável e, até, acreditar que iria melhorar, cá estou eu de novo, febril. Meu drama é ainda maior ao deitar, olhar para o lado da cama e ver quatro garrafas de rum, fechadinhas, loucas para se encontrarem com Andy. Não importa o que seja, sempre haverá líquidos estranhos me procurando. Sem forçar muito a memória, lembro da cachaça sem rótulo e com ervilhas num boteco de estrada em Sampaio Corrêa; dos rabos de galo nos bares família da Praça Mauá; das canecas de margaritas espumando em Tijuana; dois oito copos de cachaça misturada com catuaba consumidos em menos de 30 segundos na frente de mais de 100 pessoas; e da garrafa de Caninha da Roça virada no gargalo antes das 9h durante um jogo de vôlei de praia na Barra - e minha equipe venceu. Ah, tudo bem, eu também lembro do Pinho Brill.

É, num reveillon passado com amigos em Araruama, a altas horas da noite, eu bebi um gole de Pinho Brill. Para resumir a história aos curiosos, toda a bebida da casa tinha acabado e toda essa bebida era realmente muita bebida. Depois daquele dia, meu estômago nunca mais foi o mesmo. Eu era o cara que se gabava de poder beber quanto quisesse sem vomitar depois. O detergente mudou essa marra. Até hoje tenho aquele gosto na minha boca.

Não, eu não me orgulho de ter bebido Pinho Brill, como não me orgulho de ter participado do "Em Nome do Amor". São experiências de vida, lógico, mas não são das mais legais - apesar de o Silvio Santos ser muito simpático. Me vestiram com uma blusa cinza apertada e colocaram gel no meu cabelo. Eu estava lindo, como de costume, mas não é meu estilo habitual de se vestir. A primeira pergunta do Tio Silvio estragou todos os meus planos de fazer graça no ar e me deixou nervoso demais até mesmo para rebater as coisas estúpidas que minha parceira de dança estava falando. Ela morava em Inhaúma, eu não lembro seu nome e não, eu não peguei a moça. Fui ao programa me passando por um solteiro desesperado por motivos jornalísticos, apenas. Mas ela disse namoro e realmente acreditou no meu papo durante o Julio Iglesias. É um dogma que Andy nunca toma toco.

Acho que daí pode-se tirar uma explicação para minha admiração por "Um Lugar Chamado Notting Hill". O personagem de Hugh Grant é daqueles tímidos, que anda pelas sombras, fala baixo e pouco é notado. Eu sou diferente. Gosto de discrição, de silêncio e de me esconder, mas adoro contar histórias para grupos de pessoas e confio completamente na minha capacidade de dialogar com rapidez. Só que eu nunca conseguiria me declarar para alguém como William faz no fim do filme, na frente de uma multidão. Tenho pavor de público. Na minha formatura, quando chegou minha hora de dizer algumas palavras, nem o whisky bebido minutos antes, nem a cola que trazia na mão impediram que todos reparassem em meu nervosismo e constrangimento. Foi um horror. Eu sonho com o dia que eu vá conseguir me declarar para alguém daquele jeito como em "Um Lugar Chamado Notting Hill".

terça-feira, novembro 23, 2004

O amor de cada um (xiii)

A pergunta de Rafaela confundiu Júlio de forma surpreendente. Ele era dono da mente mais genial que eu já havia conhecido e treinara dias para dar aquela notícia a ela, que a argumentação lógica da moça não poderia fazer sentido nas possibilidades previamente imaginadas. Só que fazia e Júlio sabia.

Sua única reação foi pedir um tempo para pensar. Ela concordou. Júlio era assim desde garoto, precisava pensar nas coisas e odiava se precipitar em comentários e atos inoportunos. Só que pensava rápido e com precisão. Por diversas vezes, arrependeu-se do que falou e aprendeu com aqueles diversos erros.

Para que o leitor compreenda melhor sua forma de agir, acho necessário contar uma história passada na universidade. Júlio, conhecido naquela época pela maioria apenas como Rimbaud, por memorizar versos do poeta pederasta e recitá-los pelos corredores do curso de antropologia, gostava de menosprezar escritores e poetas ocidentais com argumentos simplistas e curtos. E, garanto, Júlio tinha total noção da pobreza de suas pseudo-teorias. De Camus, dizia ser pomposo demais para livros tão rasteiros. De Borges, dizia ser um grande mágico, que criava labirintos de palavras mal escolhidas para não dizer coisa alguma. De Faulkner, dizia se tratar de um recalcado que até começava bem suas histórias mas, por não conseguir traçar um fim, criava ciclos sem sentidos. De Dickinson, era ainda mais cruel e a acusava simplesmente de ser mulher no século XIX. Nem mesmo Rimbaud escapava. Dizia que ele era doente mental e que sua poesia não passava de delírios que algum homossexual, em determinada época da história, resolveu elogiar.

Júlio era fã de todos esses escritores e poetas, tenho certeza. Fazia essas análises como pura diversão, para chocar colegas e professores. Certa vez, porém, um aluno da classe de ecossistemas humanos, chamado Carlos, se não me falha a memória, muito menos brilhante que Júlio e com certeza menos atraente, lançou uma questão para aquele jovem ainda prepotente demais. Como, Julio, diga-me, a coletividade histórica imortalizou um caso tão estúpido e estapafúrdio como o do ovo de Colombo? E, ainda, por que assumia-se que o ovo, um objeto simétrico se observado tanto horizontal quanto verticalmente de um plano exterior, ficava de pé apenas quando seu ângulo mais agudo estava junto à mesa?

Eram perguntas estúpidas, mas a falta de uma resposta vibrante, como deveriam, sempre, ser as de Júlio, o calou. Gaguejou, ainda, antes, e provocou risos dos amigos. Ele, um intelectual entre plebeus, era a pessoa que usualmente ridicularizava os outros. Posto naquela situação por um colega bem menos nobre, Júlio não pôde prosseguir o curso. Largou a antropologia e deu à medicina um dos maiores profissionais que se ouviria falar nos anos seguintes.

Aprendi com os intelectuais que convivi - incluindo-se, nesse grupo de proximidade, Júlio -, que essas mentes privilegiadas nunca, simplesmente nunca deixam os erros do passado para trás. Como me disse várias vezes o próprio Júlio, puis la Vierge n'est plus que la vierge du livre. Eu mal compreendia francês, quanto mais a complexidade de "depois a Virgem volta a ser virgem de livro". Só incomodava a mim, um tolo ainda católico, a letra maiúscula à frente do primeiro virgem. Não se atenha a essa tolice, dizia-me meu amigo. Era um verso de Rimbaud e o terremoto que produzia em minha mente deixava claro que eu nunca seria como ele.

Minha admiração por Júlio não pode ser escondida nesse relato. Meu julgamento de valor deve ficar claro, mesmo que o leitor deixe de acreditar em detalhes. O diálogo entre ele e Rafaela é a única coisa que vale contar e que outros já não saibam. E nisso, por favor, acreditem. Em todas suas relações passadas, Júlio dizia claramente para quem quisesse ouvir que sua companhia era agradável, mas que não acreditava que pudesse existir algum sentimento além de carinho entre eles. Dizia que não acreditava no amor, nem partindo dele mesmo, muito menos partindo de suas mulheres. Todas se irritavam, ao ponto de gerar conflitos em público quando embriagadas. Entrar em uma discussão pública com Júlio era invariavelmente um pedido de humilhação, e todas suas mulheres, mais do que ninguém, sabiam disso.

Depois de passar quatro dias mais silencioso do que o de costume, ele disse a Rafaela peremptório. Eu não te amo mais. E repetiu a frase três vezes, praticamente sem pausas entre uma e outra. A bela moça branca de cabelos ruivos era talvez mais invejada pela maioria dos conhecidos de Júlio do que seu intelecto. Esse era um ponto até mesmo discutido em mesas de bar. O que ele tinha de mais valioso, Rafaela ou sua genialidade? Eu defendia o segundo item, por acreditar que coisas inerentes são sempre mais interessantes ao ser humano do que aquelas conquistadas. Discordavam, claro, de meu pensamento anti-desenvolvimentista e, até, anti-darwinista numa análise menos óbvia. Só que eles não conheciam Júlio como eu.

A resposta de sua esposa a sua confissão foi simples e direta. Em nenhum instante ela se abalou e somente perguntou como ele não a amaria mais se ele não acreditava no amor. Para existir a negação de um, deve existir o outro, Júlio, você sabe disso. Um fuzilamento de pura lógica, que desnorteou meu amigo de uma maneira que me deixaria constrangido se eu estivesse presente.

O tempo que ele pediu para pensar, na verdade, era um tempo para fugir. Sem resposta, simplesmente desapareceu. Era por isso que ele estava com Rafaela há sete anos, casado, consolou-se. Foi seu mais longo período com uma mulher e ele nunca havia usado a justificativa da falta de amor para encerrar uma relação.

Todos pensaram que ele havia se matado. Anos mais tarde, recebi um e-mail de um servidor gratuito. Júlio me contava todo o caso, dizia estar bem, vivendo numa pequena cidade do interior de Minas Gerais que ele omitiu, e implorava que eu não revelasse seu segredo. Trabalhava como médico e ganhava muito mais do que precisava para seguir adiante. Sentia falta de um ou outro livro, mas, dizia, já havia lido suficientes e estava se deliciando com uma literatura rasteira feita por seus vizinhos e escrita oralmente. Despedia-se com um simples adeus e o pedido para que eu esperasse mais alguns anos, até que todos tivessem esquecido seu nome, e escrevesse esse relato deixando claro, no fim, que não se trata de um fato real. Eu nunca mais tive notícias de Júlio e até hoje sinto falta de meu querido amigo.

segunda-feira, novembro 22, 2004

O Mundo Anda Tão Complicado ou O Dia Em Que O Rock Tupiniquim Teve Colhões

Era domingo e eu e meu amigo Eduardo resolvemos beber mais do que jovens saudáveis se deveriam permitir. Pode-se argumentar que eu e meu amigo Eduardo talvez possamos nos considerar jovens, mas saudáveis já seria forçar uma barra. Portanto, bebemos sem culpa e com prazer. Em algum ponto da coisa toda, após falarmos de futebol e mulher, porque é sobre isso que nós, homens que fazem a barba no sentido contrário do nascimento dos pêlos maltratando a pele (em tempo, o nome técnico é escanhoar), gostamos de fazer - além de jogar bola e fazer o tal do amor - pois bem, em algum ponto da coisa toda, após a saideira já no carro de Eduardo perto da Lagoa começou a rolar o Legião Urbana V no CD Player.

Deixa eu começar a justificar esse palavrório agora. Vocês deveriam saber, eu sou fã de Legião Urbana. Rabiscava em folhas de livros escolares Urbana Legio Omnia Vincit e me achava o tal durante o ato. Levei anos para aceitar a idéia de que a minha camiseta puída e rasgada da banda deveria virar pano de chão ou algo do tipo. Tive um colarzinho com a medalha que ornamenta a capa do V. Decorei trechos inteiros de Faroeste Caboclo. Fã mesmo, portanto, bobo, fiel, ranzinza. A Legião com seus rocks básicos e sem maiores intenções sempre me cativou mas tem um disco em especial que me tira do sério, esse Legião Urbana V.

Nele, a segunda música é Metal Contra As Nuvens. Aquela dos versos finais "O mundo começa agora/apenas começamos". Pois bem, esse disco foi crucial para a banda, porque foi o primeiro disco deles em que Renato Russo entrega pelas letras que algo de drástico havia acontecido com ele. Hoje sabemos que era a AIDS. O cara iria morrer e o final de Sereníssima diz "Tenho um sorriso bobo, parecido com um soluço/Enquanto o caos segue em frente/Com toda a calma do mundo". É lindo de fazer chorar, porque é triste e é uma tristeza tão íntima que parece até felicidade. Parece que a banda (nunca a Legião teve um som tão grandioso) gravou o disco com o exame positivo de seu vocalista e principal compositor em mãos, então, aquele cara que era amigo deles estava com os dias oficialmente contados e talvez aquele poderia ser o último disco deles, quem poderia saber? Desse disco em diante, a postura pós-punk da legião seria coisa do passado, consolidando a mudança iniciada em As Quatro Estações. As letras passam a tratar de pequenos dramas pessoais. O som fica bem mais redondo.

Mas, ao trazer seu público para seu íntimo, Renato engrandeceu a ligação entre a banda e seus fãs num limiar que talvez só haja por aqui com Roberto Carlos e Raul Seixas. As imagens de desolação vão passando pelo disco como fotogramas de um tempo passado há muito, como se fosse um grande álbum de fotografias e não um álbum de rock, há um certo amargor em cada estrofe, como se doesse fisicamente em Renato gravar aquelas músicas, a doença o matando e ele cantando para não morrer calado. Se você tem um mínimo de coração em seu peito, a vontade de chorar um pouquinho pra ver se a dor que o cara sente enquanto canta aquelas músicas (e que músicas, puta que o pariu, que músicas!) diminui um pouco é inevitável. Quando chega O Mundo Anda Tão Complicado, parece que está tudo certo, como se ele te acordasse de um pesadelo e te fizesse um carinho pra você voltar a dormir, a vida continua e se entregar é uma bobagem, né? Pois bem, o disco é resumido na estrofe final dessa canção: "Quero ouvir uma canção de amor/Que fale da minha situação/De quem deixou a segurança do seu mundo/Por amor/Por amor."

Não é pra qualquer um fazer um disco desses. Bob Dylan, que é Bob Dylan, fez o Blood On The Tracks após seu divórcio em plena era de recessão na Matriz, na ressaca do fiasco no Vietnam. A Legião transformou a tragédia pessoal de seu vocalista e compositor em músicas imortais. É o tipo de disco que você ouve com cuidado e com carinho, e te faz ser uma pessoa melhor porque tangencia na urgência de amar, essa urgência à qual todos nós estamos submetidos, porque vivos. A Legião Urbana sempre vence, pessoal, não se esqueçam.

domingo, novembro 21, 2004

O cubano que quase mudou minha viagem

Sinceramente não sei por onde começar. Acho que me deterei apenas num curto texto, sem maiores pretensões e sem revelações interessantes. É, eu voltei de Cuba. Foram 12 horas sentado em aeroportos - José Martí e Ezeiza - e 11 sentado em aviões - Cubana de Aviación e Varig. E, mesmo tendo tido tanto tempo para organizar minhas recordações de viagem num bloco, só sinto vontade neste momento de falar da minha decepção inicial com os cubanos.

É importante deixar claro para nossos leitores que não, eu não pretendo ser cruel na análise que farei. Fui cruel em Cuba, admito, e deixei transparecer minha raiva por algumas horas, talvez um dia inteiro. Fui grosso com algumas pessoas e respondi outras com mais rigidez do que deveria.

O auto-julgamento de minhas atitudes indelicadas não esclarece coisa alguma. Cheguei a pensar que não estava acostumado com tanta miséria mas, convenhamos, as pessoas na Maré, na Rocinha e no Dona Marta são bem mais pobres do que os cubanos que conheci e com essas eu estou mais do que acostumado. Outra explicação - mais sensata - para meus atos pode ser uma antes duvidosa crença que tenho na bondade do ser-humano. Talvez eu tenha chegado em Cuba acreditando que, mesmo não fazendo amigos para toda a vida, eu seria capaz de criar algumas relações de confiança. Os cubanos me mostraram uma parte obscura de minha personalidade: que preciso confiar nos sentimentos das pessoas. Tantas aproximações com intenções pouco nobres me fizeram muito mal e provocaram indiretamente a perversidade que acometeu meu coração. Mas de longe não justificam.

Sim, o tão sempre simpático André Miranda foi pego numa onda de antipatia e mau-humor. Pensei, até, em pegar um avião e me isolar em Cayo Largo, uma pequena ilha cubana com uma praia de nudismo e praticamente só freqüentada por turistas. Ficaria peladão e solitário, curando meu ataque de raiva. Felizmente desisti - ainda mais por não ser exatamente um fã de praias.

A forma de agir dos cubanos já estava me incomodando quando o fato que relatarei aconteceu, no fim do meu segundo dia de viagem, por volta das 17h. O Capitólio cubano - uma réplica do americano, construído antes da revolução, onde hoje funciona uma espécie de sala de exposições e um centro de estudos - era meu local preferido para descansar depois de até sete horas de caminhadas (eu só peguei táxi em Havana nos traslados aeoroporto-hotel-aeroporto). Lá há uma varanda super simpática, vende-se cerveja importada e é possível acessar a internet.

Eu atravessava a rua para entrar no Capitólio quando um sujeito meio gordinho, aparentado uns 50 anos, avisou-em que meu cadarço, como sempre, estava desamarrado. Certa vez, contou-me que, bêbado de tanto rum, caiu de cara no meio da rua, ali perto mesmo, por causa de um cadarço desamarrado. Ficou com o nariz inchado por semanas, jurou o cubano. Simpatizei. Conversamos sobre futebol, telenovelas e o governo. Eu vinha num processo de decepção com o povo cubano e enxerguei naquele sujeito uma chance de redenção. Redenção mais minha - lembro que minha raiva me incomodava - do que deles, provavelmente. Como Camus, não tendo a aceitar as justificativas para a revolta do ser-humano.

Até que resolvi testar meu interlocutor, dizendo que lhe daria um presente. E ele se recusou a aceitar, mesmo sem ver do que se tratava. Era um bom cubano, sem sombra de dúvidas, e havia me conquistado.

Depois de mais um tanto de conversa, porém, tudo mudou. Eu tenho dois filhos, o leite é caro, será que você não poderia me arrumar uns U$ 3 ou U$ 4 para que eu alimente as crianças? Foi exatamente esse discurso, nem mesmo invento a indefinição do valor pedido. E, sabem, eu estava de coração aberto, estava realmente entregue àquele cubano e disposto a oferecer um trago, a fumar um charuto junto, a prometer mandar coisas pelo correio depois de minha volta.

Senti-me muito mal e quis sair dali. Quis sair de Cuba até, eu acho. Dei-lhe U$ 3 para que sumisse e sumi também. Paguei por uma hora de internet e me alienei. Fiquei pensando em alugar um carro e, ao invés de seguir o objetivo de minha viagem e conhecer a cultura cubana, conhecer apenas as estradas.

Passei a tratar muito mal todos que falavam comigo. Respondia secamente e ignorava alguns, até. No dia seguinte, uma professora cubana salvou minha viagem. Mas isso eu conto depois. O que vale dizer agora é que foi muito penoso conhecer e tentar entender os cubanos. Mas acho que me saí bem.

terça-feira, novembro 16, 2004

Tenho so 3 minutos restantes na internet, entao serei rapido: os cubanos sao muito chatos, mas o Havana Club compensa.

domingo, novembro 14, 2004

Una noche de amor loco con una adolescente virgen

Entendam, antes de me julgarem, que tenho que ficar uma hora no Aeropuerto Ezeiza esperando para entrar na área de embarque. Ou seja, em vez de me chamarem de nerd, assim, cruelmente, saibam que a internet é apenas uma forma de passar o tempo.

Pois bem, sobrevevi à primeira parte da viagem. Está chovendo em Buenos Aires e meus pés estao molhados. Passei o dia rodando o centro da cidade, tirei fotos de uns garotos em situaçao de risco social, fugi assustando quando eles pegaram umas pedras e estou meio bêbado depois de cinco canecas de quilmes. Aliás, que cerveja decepcionante!

Outra diversao foi ficar procurando esteiras de cerveja. Vocês acreditam que eu só achei um bar que tivesse bolachas? E era uma espelunca, numa espécie de Central do Brasil que eu achei. Malditos hermanos. No aviao, um coroa argentino, muito simpático até certo ponto - conversando comigo sobre Paulo Coelho e Clarice Lispector -, ficou gritando, bem no meio do aviao, do lado da asa, "fidelista, fidelista". Será que meu espanhol é tao sofrível que nao consegui simplesmente dizer "estoy viajando para Havana"? Deveria ter ouvido meu velho pai e tirado a barba.

Como podem ver, meu curto dia na Argentina tinha tudo para ser péssimo, mas um simpático motorista de táxi - sempre eles - recuperou meu humor. A lorota de que ele havia hospedado um gaúcho gremista em sua casa nos anos 70 foi ótima. Jurou-me que o sujeito nao havia achado hotel e que ele havia oferecido seu quarto. Malditos argentinos. Gays e mentirosos.

Ignorei a chuva e rodei o centro de Buenos Aires a pé mesmo. Eu parecia um pedinte, cheio de frio, com um casaco pouco adequado para os 15 graus da tarde portenha e sem saber para onde ir. Aqueles meninos eu fotografei atrás do memorial aos mortos da Guerra das Malvinas. Estavam parados lá, fazendo algazarra e acho que a foto ficou bonita. Começaram a gritar "o que quieres?, o que quieres?" e a caminhar lenta e ardilosamente em minha direçao com umas pedras na mao. Como nao sou bobo, saí dali rapidinho.

Comprei apenas dois souvenirs daqui: um disco do Bersuit Vergarabat e o Memoria de mis putas tristes, do García Márques. O título desse texto faz parte da primeira frase do livro. "El año de mis noventa años quise regalar-me una noche de amor loco con una adolescente virgen". Eu me identifiquei. Como um dos três livros que trouxe praticamente já foi lido(A Ilha, como me disseram, para ser lido de uma só vez, no aviao), acho que vou ter que forçar o limite do meu espanhol - que está se virando bem, obrigado - para encarar a história do velho e da virgem. Deve ser divertido.

sexta-feira, novembro 12, 2004

Toda Forma De Amor
Cena 2

Ele descansava tão perto dela que parecia distar a milhares de quilômetros daquele quarto. O cheiro do quarto se dissolvia nos espelhos do teto, quartos de motéis são todos iguais. Nenhuma música no ambiente, apenas silêncio e um cigarro pela metade. A nudez dela refratada no espelho, o contorno das nádegas, os olhos de lince tatuados nas duas omoplatas dominavam seus olhos. Seriam aqueles signos capazes de amor? Seria ele capaz do amor? Seria aquela maldita cidade, um monstrengo de pessoas e carros e pombos de concreto, capaz de amor? Sugava a nicotina até quase tossir e então assoprava a fumaça para o alto, com amor.

Sabia que ela não dormia, porque reconhecia a respiração dela de ouvido. Estava acordada, a lhe espiar espiá-la, silenciosa e cúmplice. Ela era o oposto da cidade, ela era capaz de amor, ele simplesmente sabia disso como era capaz de saber que estava se matando a cada dose de nicotina, mas ele morreria a cada segundo com ou sem o cigarro, portanto, que diferença faria se ele era ou não capaz de amor? A maldita cidade mais dia, menos dia tomaria seu corpo de volta como matéria orgânica sob o solo de seus cemitérios, e ela talvez fosse até chorar por conta disso. Ele era triste por aquela mulher ser capaz de nutrir amor por ele, mas muito feliz também.

Quis pedir a ela que lhe explicasse o amor, o que ela sentia, por que ela ficava o observando fumar e olhar seu corpo no espelho. Não adiantaria nada, mas ele ao menos poderia ver o que lhe faltava. Foi quando ela pôs a mão sobre seu corpo latente, ele viu pelo espelho o movimento furtivo, sentiu os dedos dela através da pélvis. Deixou o cigarro para lá, o piercing que ela carregava no lábio inferior lhe beijava um verso certamente roubado de um filme americano. "O que a primavera faz com as cerejeiras, eu desejo fazer com você." Lágrimas pareciam marejar seus olhos naquele instante, mas ele foi homem suficiente para fechá-los e amar como ninguém mais aquela mulher.

quarta-feira, novembro 10, 2004

Delírios pornográficos juvenis

Quando adolescente, noite após noite eu sonhava com um súcubo invadindo meu quarto e estraçalhando minha crença cristã e minha virgindade. Era terrível e ao mesmo tempo confortante. E excitante, sem dúvida. Meu súcubo não tinha nome, talvez por meu medo de que aqueles sonhos pudessem ser uma sugestão demoníaca. Tinha medo de ser possuído mesmo.

Mas ele, o súcubo, tinha um corpo feminino fascinante, sempre nu e com uma cauda vermelha que arranhava minhas costas. Minha imaginação se esforçava, mas não lembro de um dia ter conseguido encostar em seu sexo. Apenas provocava, o demônio. Envergonho-me ainda hoje, mas foi mais ou menos naquela época que aprendi o significado de ejaculação noturna.

O efeito desses sonhos, porém, era muito pior do que pode parecer à primeira vista. Eu havia aprendido, não fazia muito tempo, que Lúcifer existia, sim, e que atuava entre os seres-humanos, instigando-os para se afastarem de Deus. E, lógico, eu havia acreditado. Desnecessário dizer que eu tremia de medo de encontrar um dos arautos do tinhoso por aí. Não temia exatamente a figura grotesca com rabo, tridente e chifres. As raízes de minha fé eram rasas demais e não seria preciso muito esforço para que eu sucumbisse a algumas tentações.

Nesta mesma época cogitei colocar um crucifixo pendurado no banheiro, para tentar evitar qualquer pecado solitário comum e penoso a jovens, adultos e padres realmente católicos. Desisti, possivelmente pela percepção que a masturbação não seria evitada e só aumentaria minha culpa.

Esse delírio, o do súcubo, veio à cabeça e parou no papel depois que recebi, de uma grande amiga estudante de história, um e-mail com casos da Idade Média: "dos judeus, dizia-se que eram agentes do Diabo, que tinham órgãos sexuais anormalmente grandes e que desejavam com concupiscência as donzelas cristãs". É incrível como a gente vai aprendendo coisas nessa vida. Se tivessem me contado isso na adolescência, acredito que teria, eu mesmo, arrancado meu prepúcio, aderido ao mundo da ilusão de ótica e me convertido ao judaísmo. Estou certo que ficaria lindo de quipá. Nunca fiz questão de um órgão sexual anormalmente grande, mas esse negócio de donzela sempre mexeu comigo.

Meus sonhos hereges, os com um súcubo, atormentaram minhas confissões durante um bom tempo. Eu simplesmente não tinha coragem para contar a meu confessor. Dom Tadeu, eu tenho mais um pecado. Eu tenho ereções, daquelas do tipo quase-voluntárias, ao imaginar um demônio do sexo feminino deitado em minha cama. Dom Tadeu, existe perdão para isso?

Alguns anos depois, lendo Hellblazer, um dos meus quadrinhos preferidos, fui induzido a me imaginar em cenas de sexo com a Virgem Maria. E, entendam, eu participava de uma congregação mariana, o que tornava tal pecado muito mais pecado mortal do que qualquer outro que eu pudera ter cometido anteriormente. Em fúria, por aqueles pensamentos sórdidos, rasguei dúzias de gibis com as histórias de John Constantine. E fiz com raiva e com tesoura. Segui o caminho mais simples e culpei os quadrinhos por meu pecado. Dali em diante, nunca mais sonhei com um súcubo, mas também nunca mais fui o mesmo católico de antes.

Já muitos anos depois, nem mais católico nem mais virgem, tive a impressão de conhecer um súcubo. Fui seduzido, mas novamente não encostei em seu sexo. Conversamos sobre minha crença na inexistência do amor. Acredite, súcubo, o amor, como o concebemos, não passa de comodidade e conveniência. Ele se excitou com aquele papo e pareceu concordar. André Miranda, você é meu tipo de homem e, juntos, andaremos em pândegas, provocaremos os puritanos e seremos felizes.

Tudo o que eu sempre busquei como católico foi a busca pela felicidade, sabem? A imagem juvenil do súcubo voltou, virei as costas e sumi sem dizer uma palavra. Eu não acredito mesmo nesse amor entre homens e mulheres, mas já acreditei no amor de Deus. E isso não é exatamente fácil de apagar.

terça-feira, novembro 09, 2004

Galera, morram de inveja. Pedi minhas folgas no trabalho e domingo vou para Cuba. Fumarei charutos e beberei muito rum. Na volta, prometo marcar uma festa regada de Havana Club!! Voltarei em uma semana. Por favor, sintam minha falta.

quarta-feira, novembro 03, 2004

Delírios pornográficos infantis II

(os primeiros destes delírios estão em 9 de agosto de 2003)

Quando moleque, eu era exatamente como o Charlie Brown. Tinha um cachorro, chamado Vince dos Amores, adorava esportes, tinha cara de pastel e era apaixonado por uma menininha ruiva. Eu e Vince ficávamos horas jogando futebol no quintal de casa. O cretino estragou muitas bolas dente-de-leite. Era um pastor alemão e com os dentes afiados, o Vince.

Outra de minhas atividades era ficar sentado no quintal ouvindo um walkman que mamãe me comprou numa viagem à Europa. Deveria ser vagabundo, mas era amarelo e cheio e botões, o suficiente para encantar um pré-adolescente suburbano como eu.

O que mais gostava de ouvir no quintal era uma fita cheia de músicas do Elvis que um tio metido a moderno gravou e me deu de presente no meu aniversário de 11 anos. Tome, André, isso sim é rock'n'roll. E tome essa camisa do Vasco também, para você fazer muitos gols. Hoje eu sei que rock é muito mais do que Elvis mas, sejam francos, não existe pessoa no mundo que não simpatize com uma ou outra canção do Rei. Eu gostava de várias, principalmente Love me Tender, Sweet Caroline e Blue Moon.

A Michele era ruiva e morava na esquina da minha rua, a seis casas de distância. Ela tinha um irmão mais novo mala. Acho que havia um "s" e um "l" a mais em seu nome - como não tenho certeza, fico com a grafia mais simples. Seus cabelos, os da Michele, eram castanhos, bem lisos e seus olhos eram verdinhos, verdinhos. Ela era magrinha, como costumam ser as meninas de 12 ou 13 anos, e tinha um sorriso lindo, aconchegante. Só mais tarde, depois de passar por dúzias de paixões que perdem a validade no dia seguinte, é que eu vim a perceber que não resistia àquele tipo de sorriso, sincero e meigo.

Então, quando eu misturava Michele e Elvis, era depressão para todos os lados. Eu era um jovem católico, tímido e temeroso em ser rejeitado. Já havia escutado casos de garotos que nunca se recuperaram depois de uma rejeição na juventude. Essas coisas acabam marcando e formam a personalidade da pessoa, sabem? Meu medo, então, era pertinente. Além disso, Michele pouco parecia me dar bola. Nunca abrira um daqueles sorrisos só para me cumprimentar. Oi, André, estou atrasada para a escola. Ela sempre se dizia atrasada para a escola e passava direto por mim, sem trocar mais de sete palavras. Por ela saber meu nome, eu já me confortava de alguma forma, pelo menos. Não se almeja muitas coisas mesmo com meninas quando se tem menos de 15 anos.

A música que eu mais ouvia para pensar em Michele era Blue Moon. Quando a lua estava cheia, então, eu praticamente chorava. You saw me standing alone, without a dream in my heart, without a love of my own. Eu ouvia a música e pedia ajuda para a lua. Não chegava a santificar a lua, o que seria um baita pecado, mas tentava me inspirar nela e no Elvis.

Pois bem, um dia eles me recompensaram. Uma festinha noutra casa da rua, aniversário de uma menina chamada Aline, loura, pouco mais velha do que eu. A Michele foi e havia refrigerantes variados e algum ponche.

Depois de muita Cindy Lauper, muito Ace of Base, muito New Kids on The Block, muito Jive Bunny and The Mastermixs, depois disso tudo tocaram Blue Moon. Agradeci à lua e a Deus, não necessariamente nessa ordem, e pensei no Elvis. Cheio de si, topetudo, encantando as garotas. It´s now or never, me dizia o Rei na sétima faixa daquela fita gravada pelo meu tio, duas antes de Blue Moon.

A Michele estava voltando do banheiro para sua rodinha de amigas. Oi, você não está atrasada para a escola agora, né? E a menina sorriu, Deus, como sorriu. Um sorriso sincero e meigo para o André. Eu tive menos de dois minutos e quarenta para dançar, falar em seu ouvido que ela era a menina mais bonita da rua e pedir para roubar um beijo. Porque desde esta época eu tinha essa mania de pedir para roubar um beijo. A permissão e o roubo aliam duas coisas que fascinam as mulheres: transgressão e respeito. Raramente falhou.

Dançamos outras músicas, mas depois arrastei minha menininha ruiva para o canto da festa. Enquanto nos beijávamos, eu, meio sem entender bem o motivo, acabei pousando minha mão direita em sua nádega esquerda. Ela, a Michele, provavelmente também sem entender o motivo, não pareceu se importar. Foi a melhor noite do ano, com certeza.

Só que, como havia aprendido nas aulas de religião, as pessoas precisam arcar com seus atos. Eu estava tão maravilhado pela noite anterior, o Elvis, a Michele e a mão na bunda, que não sei bem como o fato chegou aos pais da minha menininha ruiva. Como assim você deixou um menino colocar a mão na sua bunda? O que mais vocês fizeram? Conte-nos Michele.

Dois dias depois da noite do beijo, Michele voltou a ser o que era antes. Oi, tudo bem, estou atrasada para a escola. No sábado, ela saía atrasada para a explicadora e, no domingo, para estudar na casa de uma amiga. Voltou a mentir, a Michele, e nunca mais sorriu para mim. Eu me confessei com Dom Tadeu, mas meu arrependimento foi tão pífio, que meu confessor preferiu bater um papo sincero sobre mulheres a me punir com pais-nossos ajoelhado. Cuidado com a pornografia, André, isso é coisa do demônio.

Quando mudamos para um apartamento, uns anos depois, meu pai teve que dar o Vince dos Amores, cão de pedigree, com nome e sobrenome, para um amigo que tinha um sítio. Chorei horrores no primeiro dia mas não foi preciso mais de uma semana para que conseguisse apagar o Vince de minha memória. Acho que ali, na pré-puberdade, começava minha crença anti-materialista - o que muitos chamariam nos anos seguintes de "coração congelado de André Miranda".

Também esqueci rapidamente Michele. Me contaram que sua família era do Espírito Santo e resolveu retornar para sua terra por problemas financeiros. Foram todos, pai, mãe, avó, o irmão mala e a menininha ruiva.

Neste momento, Anna Scott e William Thacker no Telecine Emotion!

Imperdível.