O Mundo Anda Tão Complicado ou
O Dia Em Que O Rock Tupiniquim Teve Colhões
Era domingo e eu e meu amigo Eduardo resolvemos beber mais do que jovens saudáveis se deveriam permitir. Pode-se argumentar que eu e meu amigo Eduardo talvez possamos nos considerar jovens, mas saudáveis já seria forçar uma barra. Portanto, bebemos sem culpa e com prazer. Em algum ponto da coisa toda, após falarmos de futebol e mulher, porque é sobre isso que nós, homens que fazem a barba no sentido contrário do nascimento dos pêlos maltratando a pele (em tempo, o nome técnico é escanhoar), gostamos de fazer - além de jogar bola e fazer o tal do amor - pois bem, em algum ponto da coisa toda, após a saideira já no carro de Eduardo perto da Lagoa começou a rolar o Legião Urbana V no CD Player.
Deixa eu começar a justificar esse palavrório agora. Vocês deveriam saber, eu sou fã de Legião Urbana. Rabiscava em folhas de livros escolares Urbana Legio Omnia Vincit e me achava o tal durante o ato. Levei anos para aceitar a idéia de que a minha camiseta puída e rasgada da banda deveria virar pano de chão ou algo do tipo. Tive um colarzinho com a medalha que ornamenta a capa do V. Decorei trechos inteiros de Faroeste Caboclo. Fã mesmo, portanto, bobo, fiel, ranzinza. A Legião com seus rocks básicos e sem maiores intenções sempre me cativou mas tem um disco em especial que me tira do sério, esse Legião Urbana V.
Nele, a segunda música é Metal Contra As Nuvens. Aquela dos versos finais "O mundo começa agora/apenas começamos". Pois bem, esse disco foi crucial para a banda, porque foi o primeiro disco deles em que Renato Russo entrega pelas letras que algo de drástico havia acontecido com ele. Hoje sabemos que era a AIDS. O cara iria morrer e o final de Sereníssima diz "Tenho um sorriso bobo, parecido com um soluço/Enquanto o caos segue em frente/Com toda a calma do mundo". É lindo de fazer chorar, porque é triste e é uma tristeza tão íntima que parece até felicidade. Parece que a banda (nunca a Legião teve um som tão grandioso) gravou o disco com o exame positivo de seu vocalista e principal compositor em mãos, então, aquele cara que era amigo deles estava com os dias oficialmente contados e talvez aquele poderia ser o último disco deles, quem poderia saber? Desse disco em diante, a postura pós-punk da legião seria coisa do passado, consolidando a mudança iniciada em As Quatro Estações. As letras passam a tratar de pequenos dramas pessoais. O som fica bem mais redondo.
Mas, ao trazer seu público para seu íntimo, Renato engrandeceu a ligação entre a banda e seus fãs num limiar que talvez só haja por aqui com Roberto Carlos e Raul Seixas. As imagens de desolação vão passando pelo disco como fotogramas de um tempo passado há muito, como se fosse um grande álbum de fotografias e não um álbum de rock, há um certo amargor em cada estrofe, como se doesse fisicamente em Renato gravar aquelas músicas, a doença o matando e ele cantando para não morrer calado. Se você tem um mínimo de coração em seu peito, a vontade de chorar um pouquinho pra ver se a dor que o cara sente enquanto canta aquelas músicas (e que músicas, puta que o pariu, que músicas!) diminui um pouco é inevitável. Quando chega O Mundo Anda Tão Complicado, parece que está tudo certo, como se ele te acordasse de um pesadelo e te fizesse um carinho pra você voltar a dormir, a vida continua e se entregar é uma bobagem, né? Pois bem, o disco é resumido na estrofe final dessa canção: "Quero ouvir uma canção de amor/Que fale da minha situação/De quem deixou a segurança do seu mundo/Por amor/Por amor."
Não é pra qualquer um fazer um disco desses. Bob Dylan, que é Bob Dylan, fez o Blood On The Tracks após seu divórcio em plena era de recessão na Matriz, na ressaca do fiasco no Vietnam. A Legião transformou a tragédia pessoal de seu vocalista e compositor em músicas imortais. É o tipo de disco que você ouve com cuidado e com carinho, e te faz ser uma pessoa melhor porque tangencia na urgência de amar, essa urgência à qual todos nós estamos submetidos, porque vivos. A Legião Urbana sempre vence, pessoal, não se esqueçam.