quarta-feira, novembro 03, 2004

Delírios pornográficos infantis II

(os primeiros destes delírios estão em 9 de agosto de 2003)

Quando moleque, eu era exatamente como o Charlie Brown. Tinha um cachorro, chamado Vince dos Amores, adorava esportes, tinha cara de pastel e era apaixonado por uma menininha ruiva. Eu e Vince ficávamos horas jogando futebol no quintal de casa. O cretino estragou muitas bolas dente-de-leite. Era um pastor alemão e com os dentes afiados, o Vince.

Outra de minhas atividades era ficar sentado no quintal ouvindo um walkman que mamãe me comprou numa viagem à Europa. Deveria ser vagabundo, mas era amarelo e cheio e botões, o suficiente para encantar um pré-adolescente suburbano como eu.

O que mais gostava de ouvir no quintal era uma fita cheia de músicas do Elvis que um tio metido a moderno gravou e me deu de presente no meu aniversário de 11 anos. Tome, André, isso sim é rock'n'roll. E tome essa camisa do Vasco também, para você fazer muitos gols. Hoje eu sei que rock é muito mais do que Elvis mas, sejam francos, não existe pessoa no mundo que não simpatize com uma ou outra canção do Rei. Eu gostava de várias, principalmente Love me Tender, Sweet Caroline e Blue Moon.

A Michele era ruiva e morava na esquina da minha rua, a seis casas de distância. Ela tinha um irmão mais novo mala. Acho que havia um "s" e um "l" a mais em seu nome - como não tenho certeza, fico com a grafia mais simples. Seus cabelos, os da Michele, eram castanhos, bem lisos e seus olhos eram verdinhos, verdinhos. Ela era magrinha, como costumam ser as meninas de 12 ou 13 anos, e tinha um sorriso lindo, aconchegante. Só mais tarde, depois de passar por dúzias de paixões que perdem a validade no dia seguinte, é que eu vim a perceber que não resistia àquele tipo de sorriso, sincero e meigo.

Então, quando eu misturava Michele e Elvis, era depressão para todos os lados. Eu era um jovem católico, tímido e temeroso em ser rejeitado. Já havia escutado casos de garotos que nunca se recuperaram depois de uma rejeição na juventude. Essas coisas acabam marcando e formam a personalidade da pessoa, sabem? Meu medo, então, era pertinente. Além disso, Michele pouco parecia me dar bola. Nunca abrira um daqueles sorrisos só para me cumprimentar. Oi, André, estou atrasada para a escola. Ela sempre se dizia atrasada para a escola e passava direto por mim, sem trocar mais de sete palavras. Por ela saber meu nome, eu já me confortava de alguma forma, pelo menos. Não se almeja muitas coisas mesmo com meninas quando se tem menos de 15 anos.

A música que eu mais ouvia para pensar em Michele era Blue Moon. Quando a lua estava cheia, então, eu praticamente chorava. You saw me standing alone, without a dream in my heart, without a love of my own. Eu ouvia a música e pedia ajuda para a lua. Não chegava a santificar a lua, o que seria um baita pecado, mas tentava me inspirar nela e no Elvis.

Pois bem, um dia eles me recompensaram. Uma festinha noutra casa da rua, aniversário de uma menina chamada Aline, loura, pouco mais velha do que eu. A Michele foi e havia refrigerantes variados e algum ponche.

Depois de muita Cindy Lauper, muito Ace of Base, muito New Kids on The Block, muito Jive Bunny and The Mastermixs, depois disso tudo tocaram Blue Moon. Agradeci à lua e a Deus, não necessariamente nessa ordem, e pensei no Elvis. Cheio de si, topetudo, encantando as garotas. It´s now or never, me dizia o Rei na sétima faixa daquela fita gravada pelo meu tio, duas antes de Blue Moon.

A Michele estava voltando do banheiro para sua rodinha de amigas. Oi, você não está atrasada para a escola agora, né? E a menina sorriu, Deus, como sorriu. Um sorriso sincero e meigo para o André. Eu tive menos de dois minutos e quarenta para dançar, falar em seu ouvido que ela era a menina mais bonita da rua e pedir para roubar um beijo. Porque desde esta época eu tinha essa mania de pedir para roubar um beijo. A permissão e o roubo aliam duas coisas que fascinam as mulheres: transgressão e respeito. Raramente falhou.

Dançamos outras músicas, mas depois arrastei minha menininha ruiva para o canto da festa. Enquanto nos beijávamos, eu, meio sem entender bem o motivo, acabei pousando minha mão direita em sua nádega esquerda. Ela, a Michele, provavelmente também sem entender o motivo, não pareceu se importar. Foi a melhor noite do ano, com certeza.

Só que, como havia aprendido nas aulas de religião, as pessoas precisam arcar com seus atos. Eu estava tão maravilhado pela noite anterior, o Elvis, a Michele e a mão na bunda, que não sei bem como o fato chegou aos pais da minha menininha ruiva. Como assim você deixou um menino colocar a mão na sua bunda? O que mais vocês fizeram? Conte-nos Michele.

Dois dias depois da noite do beijo, Michele voltou a ser o que era antes. Oi, tudo bem, estou atrasada para a escola. No sábado, ela saía atrasada para a explicadora e, no domingo, para estudar na casa de uma amiga. Voltou a mentir, a Michele, e nunca mais sorriu para mim. Eu me confessei com Dom Tadeu, mas meu arrependimento foi tão pífio, que meu confessor preferiu bater um papo sincero sobre mulheres a me punir com pais-nossos ajoelhado. Cuidado com a pornografia, André, isso é coisa do demônio.

Quando mudamos para um apartamento, uns anos depois, meu pai teve que dar o Vince dos Amores, cão de pedigree, com nome e sobrenome, para um amigo que tinha um sítio. Chorei horrores no primeiro dia mas não foi preciso mais de uma semana para que conseguisse apagar o Vince de minha memória. Acho que ali, na pré-puberdade, começava minha crença anti-materialista - o que muitos chamariam nos anos seguintes de "coração congelado de André Miranda".

Também esqueci rapidamente Michele. Me contaram que sua família era do Espírito Santo e resolveu retornar para sua terra por problemas financeiros. Foram todos, pai, mãe, avó, o irmão mala e a menininha ruiva.