O amor de cada um (xiii)
A pergunta de Rafaela confundiu Júlio de forma surpreendente. Ele era dono da mente mais genial que eu já havia conhecido e treinara dias para dar aquela notícia a ela, que a argumentação lógica da moça não poderia fazer sentido nas possibilidades previamente imaginadas. Só que fazia e Júlio sabia.
Sua única reação foi pedir um tempo para pensar. Ela concordou. Júlio era assim desde garoto, precisava pensar nas coisas e odiava se precipitar em comentários e atos inoportunos. Só que pensava rápido e com precisão. Por diversas vezes, arrependeu-se do que falou e aprendeu com aqueles diversos erros.
Para que o leitor compreenda melhor sua forma de agir, acho necessário contar uma história passada na universidade. Júlio, conhecido naquela época pela maioria apenas como Rimbaud, por memorizar versos do poeta pederasta e recitá-los pelos corredores do curso de antropologia, gostava de menosprezar escritores e poetas ocidentais com argumentos simplistas e curtos. E, garanto, Júlio tinha total noção da pobreza de suas pseudo-teorias. De Camus, dizia ser pomposo demais para livros tão rasteiros. De Borges, dizia ser um grande mágico, que criava labirintos de palavras mal escolhidas para não dizer coisa alguma. De Faulkner, dizia se tratar de um recalcado que até começava bem suas histórias mas, por não conseguir traçar um fim, criava ciclos sem sentidos. De Dickinson, era ainda mais cruel e a acusava simplesmente de ser mulher no século XIX. Nem mesmo Rimbaud escapava. Dizia que ele era doente mental e que sua poesia não passava de delírios que algum homossexual, em determinada época da história, resolveu elogiar.
Júlio era fã de todos esses escritores e poetas, tenho certeza. Fazia essas análises como pura diversão, para chocar colegas e professores. Certa vez, porém, um aluno da classe de ecossistemas humanos, chamado Carlos, se não me falha a memória, muito menos brilhante que Júlio e com certeza menos atraente, lançou uma questão para aquele jovem ainda prepotente demais. Como, Julio, diga-me, a coletividade histórica imortalizou um caso tão estúpido e estapafúrdio como o do ovo de Colombo? E, ainda, por que assumia-se que o ovo, um objeto simétrico se observado tanto horizontal quanto verticalmente de um plano exterior, ficava de pé apenas quando seu ângulo mais agudo estava junto à mesa?
Eram perguntas estúpidas, mas a falta de uma resposta vibrante, como deveriam, sempre, ser as de Júlio, o calou. Gaguejou, ainda, antes, e provocou risos dos amigos. Ele, um intelectual entre plebeus, era a pessoa que usualmente ridicularizava os outros. Posto naquela situação por um colega bem menos nobre, Júlio não pôde prosseguir o curso. Largou a antropologia e deu à medicina um dos maiores profissionais que se ouviria falar nos anos seguintes.
Aprendi com os intelectuais que convivi - incluindo-se, nesse grupo de proximidade, Júlio -, que essas mentes privilegiadas nunca, simplesmente nunca deixam os erros do passado para trás. Como me disse várias vezes o próprio Júlio, puis la Vierge n'est plus que la vierge du livre. Eu mal compreendia francês, quanto mais a complexidade de "depois a Virgem volta a ser virgem de livro". Só incomodava a mim, um tolo ainda católico, a letra maiúscula à frente do primeiro virgem. Não se atenha a essa tolice, dizia-me meu amigo. Era um verso de Rimbaud e o terremoto que produzia em minha mente deixava claro que eu nunca seria como ele.
Minha admiração por Júlio não pode ser escondida nesse relato. Meu julgamento de valor deve ficar claro, mesmo que o leitor deixe de acreditar em detalhes. O diálogo entre ele e Rafaela é a única coisa que vale contar e que outros já não saibam. E nisso, por favor, acreditem. Em todas suas relações passadas, Júlio dizia claramente para quem quisesse ouvir que sua companhia era agradável, mas que não acreditava que pudesse existir algum sentimento além de carinho entre eles. Dizia que não acreditava no amor, nem partindo dele mesmo, muito menos partindo de suas mulheres. Todas se irritavam, ao ponto de gerar conflitos em público quando embriagadas. Entrar em uma discussão pública com Júlio era invariavelmente um pedido de humilhação, e todas suas mulheres, mais do que ninguém, sabiam disso.
Depois de passar quatro dias mais silencioso do que o de costume, ele disse a Rafaela peremptório. Eu não te amo mais. E repetiu a frase três vezes, praticamente sem pausas entre uma e outra. A bela moça branca de cabelos ruivos era talvez mais invejada pela maioria dos conhecidos de Júlio do que seu intelecto. Esse era um ponto até mesmo discutido em mesas de bar. O que ele tinha de mais valioso, Rafaela ou sua genialidade? Eu defendia o segundo item, por acreditar que coisas inerentes são sempre mais interessantes ao ser humano do que aquelas conquistadas. Discordavam, claro, de meu pensamento anti-desenvolvimentista e, até, anti-darwinista numa análise menos óbvia. Só que eles não conheciam Júlio como eu.
A resposta de sua esposa a sua confissão foi simples e direta. Em nenhum instante ela se abalou e somente perguntou como ele não a amaria mais se ele não acreditava no amor. Para existir a negação de um, deve existir o outro, Júlio, você sabe disso. Um fuzilamento de pura lógica, que desnorteou meu amigo de uma maneira que me deixaria constrangido se eu estivesse presente.
O tempo que ele pediu para pensar, na verdade, era um tempo para fugir. Sem resposta, simplesmente desapareceu. Era por isso que ele estava com Rafaela há sete anos, casado, consolou-se. Foi seu mais longo período com uma mulher e ele nunca havia usado a justificativa da falta de amor para encerrar uma relação.
Todos pensaram que ele havia se matado. Anos mais tarde, recebi um e-mail de um servidor gratuito. Júlio me contava todo o caso, dizia estar bem, vivendo numa pequena cidade do interior de Minas Gerais que ele omitiu, e implorava que eu não revelasse seu segredo. Trabalhava como médico e ganhava muito mais do que precisava para seguir adiante. Sentia falta de um ou outro livro, mas, dizia, já havia lido suficientes e estava se deliciando com uma literatura rasteira feita por seus vizinhos e escrita oralmente. Despedia-se com um simples adeus e o pedido para que eu esperasse mais alguns anos, até que todos tivessem esquecido seu nome, e escrevesse esse relato deixando claro, no fim, que não se trata de um fato real. Eu nunca mais tive notícias de Júlio e até hoje sinto falta de meu querido amigo.