terça-feira, novembro 30, 2004

Abriu o envelope com cuidado, não era uma carta qualquer, ela jamais lhe escreveria cartas quaisquer. Saiu de soslaio num domingo de madrugada, como se fosse um bandido e pretendeu a ilusão de deixar o quarto dela e toda a casa onde morava como se ele jamais houvesse estado ali meses. Fugiu sem aviso, havia chegado de pára-quedas e achou tudo muito certo, por que não? Ela tinha o sono pesado e ele tinha o passo leve, foram um casal perfeito na aparência.

Seus passos de plumas deixaram pegadas pela sala, pelos banheiros, entre jardins como se todo o chão onde ele pisasse fosse neve, fosse leve e ele pesado. O sono pesado dela se desmanchava no ar por conta da insônia e ali, ela lhe escrevia, escrevia sobre a ausência dele, a impossibilidade daquele mundo que desconstruíam. Pela manhã, sorriam. Nem ouvi você chegar, menino. Não quis te acordar, linda. Mentiam.

Foi já na rua, as suas coisas em um par de malas que percebeu o envelope no bolso do casaco. Idiota, se perguntou como diabos ela sabia. O crime perfeito é aquele que não se comete, deveria ter aprendido a um bom tempo atrás. Então leu a carta debaixo de um poste de luz. Eram poucas palavras, mas viu que ela não temera, não tremera, nem ao menos errara na concordância.

Caminhou pesado rumo à estação ciente de que deixava atrás de si um sono leve.