sexta-feira, novembro 12, 2004

Toda Forma De Amor
Cena 2

Ele descansava tão perto dela que parecia distar a milhares de quilômetros daquele quarto. O cheiro do quarto se dissolvia nos espelhos do teto, quartos de motéis são todos iguais. Nenhuma música no ambiente, apenas silêncio e um cigarro pela metade. A nudez dela refratada no espelho, o contorno das nádegas, os olhos de lince tatuados nas duas omoplatas dominavam seus olhos. Seriam aqueles signos capazes de amor? Seria ele capaz do amor? Seria aquela maldita cidade, um monstrengo de pessoas e carros e pombos de concreto, capaz de amor? Sugava a nicotina até quase tossir e então assoprava a fumaça para o alto, com amor.

Sabia que ela não dormia, porque reconhecia a respiração dela de ouvido. Estava acordada, a lhe espiar espiá-la, silenciosa e cúmplice. Ela era o oposto da cidade, ela era capaz de amor, ele simplesmente sabia disso como era capaz de saber que estava se matando a cada dose de nicotina, mas ele morreria a cada segundo com ou sem o cigarro, portanto, que diferença faria se ele era ou não capaz de amor? A maldita cidade mais dia, menos dia tomaria seu corpo de volta como matéria orgânica sob o solo de seus cemitérios, e ela talvez fosse até chorar por conta disso. Ele era triste por aquela mulher ser capaz de nutrir amor por ele, mas muito feliz também.

Quis pedir a ela que lhe explicasse o amor, o que ela sentia, por que ela ficava o observando fumar e olhar seu corpo no espelho. Não adiantaria nada, mas ele ao menos poderia ver o que lhe faltava. Foi quando ela pôs a mão sobre seu corpo latente, ele viu pelo espelho o movimento furtivo, sentiu os dedos dela através da pélvis. Deixou o cigarro para lá, o piercing que ela carregava no lábio inferior lhe beijava um verso certamente roubado de um filme americano. "O que a primavera faz com as cerejeiras, eu desejo fazer com você." Lágrimas pareciam marejar seus olhos naquele instante, mas ele foi homem suficiente para fechá-los e amar como ninguém mais aquela mulher.