Inventando Dogmas
André é repórter. Leandro é assessor. Ambos são pagos para relatar os fatos do cotidiano e ocupam boa parte de seu tempo nisso. Mas não aqui. As narrativas ficcionais aqui alocadas são exatamente o que parecem: ficção. Se lhe apetecem parecência com o mundo real e cão, entre num curso de interpretação de textos, consulte seu oftalmologista ou vá ler Diário de Um Fescenino, de Rubem Fonseca. Se não resolver, você é um idiota e André e Leandro nada têm a ver com isso.
sexta-feira, julho 30, 2004
quarta-feira, julho 21, 2004
O amor de cada um (XI)
Eu me chamo Jorge, Jorge dos Santos, e tenho 36 anos. Até o mês passado eu só tinha me relacionado com mulheres. Acho que tive mais de 15 em minha cama. Fui casado por cinco anos com Silvia Guedes, Silvia dos Santos até nos separarmos há três anos. Um dia eu reclamei de sua mania de me questionar sobre qualquer coisa e ela resolveu me deixar. Nunca entendi.
No dia 12 de junho resolvi que queria dar o rabo. Era apenas para experimentar, ver qual é. Uma namorada, Juliana Cardoso, gostava de enfiar o dedo no meu rabo enquanto transávamos. Eu achava que não curtia tanto, mas também não queria cortar o barato dela e deixava. Isso foi há uns 13 anos e, naquela época, a mera insinuação que eu poderia gostar de dar o rabo me irritava. Lembro quando eu contei essa história para meu melhor amigo, Helton Silas, aquele danado. Ele espalhou para todo mundo que eu gostava de um dedo no cu. Filho da puta. Fiquei irado e parei de falar com Helton por algumas semanas. Depois ele se desculpou e reatamos a amizade. Mas a implicância de meus conhecidos fez com que eu proibisse Juliana de me dedar e ela me deixou por me achar infantil demais.
Eu não decidi dar o rabo por acaso. Achava que estava desiludido com o sexo. Paguei por três meses putas, aquelas ditas especialistas, para ver se eu me animava, mas não deu certo e eu continuei achando a coisa toda muito desinteressante. Não era falta de atração por mulheres. A presença de um belo corpo feminino nu ainda provocava, e provoca, os mesmos efeitos de sempre no meu corpo. Pau duro, batimentos acelerados, suor seco, essas coisas. Mas na hora do sexo, não era mais a mesma coisa.
Eu não brochava, nunca brochei. Porém, eu não conseguia mais ter a mesma satisfação do passado. Pensei em procurar um psicólogo, mas as consultas são caras e eu andava meio sem grana. Tentei várias coisas com as especialistas. Amarrei e fui amarrado, observei e fui observado, dei e levei porrada. Nada adiantou. Uma vez eu pedi que uma moça se fantasiasse de Mamãe-Noel. Venha, Mamãe-Noel, deixe-me ser seu trenó.
Eu comia, dava umas risadas depois, fumava um cigarro, mas me sentia entediado. Não era mais divertido e sexo tinha que ser divertido. Passei a achar que eu tinha virado gay. Sempre ouvi histórias de pessoas que viravam gays depois de velhos, por desilusão com as mulheres. Eu não estava desiludido com as mulheres, mas passei a considerar a hipótese.
Comprei umas revistas de nu masculino numa banca perto de casa. Se eu ainda tivesse uns vinte e poucos anos, comprar essas revistas seria uma martírio, praticamente impensável. Com 36 anos eu nem me importava. O português da banca me olhou de cara feia. Toda a manhã eu ia lá para comprar jornal e palavras cruzadas. O Globo e uma Coquetel difícil, por favor. Uma vez, ele me vendeu uma coquetel de letras grandes. Puto, no dia seguinte cheguei lá com aqueles óculos de brinquedo bem grande, que peguei emprestado de meu filho, Lucas. Só para sacanear o filho da puta do português. Eu odiava palavras cruzadas com letras grandes.
Quando eu cheguei para comprar as revistas o português arregalou mais os olhos do que quando eu fui com aqueles óculos esquisitos. Falei bem alto. Eu quero essa "Big escoteiro", essa "G Magazine" e essa "Black muscles". Que belo negro na capa, não acha? O português ficou puto.
E só para isso mesmo serviram as revistas, sacanear o português. Como eu já esperava, continuei achando o corpo masculino desinteressante. Até mesmo o negro da capa, o Francis 25. Nem ele me excitou.
Pois bem, se o problema não era minha atração por mulheres, o que mais poderia ser? Cheguei a cogitar parceiros menos ortodoxos para a prática sexual, mas nunca fui fã de cachorros, cadáveres me assustavam e bonecas infláveis eram maquiadas demais.
Lembrei então da Juliana Cardoso, a tal que gostava de enfiar o dedo no meu rabo. Passei a acreditar que aquela história de não curtir tanto era balela. Eu gostava, sim. Ela tinha um dedo longo e a unha comprida. E sabia fazer um carinho.
Arrumei com minhas amigas putas um negro, especialista, a quem só chamava de Francis. Eu nem quis saber seu nome. As mulheres estavam lá, duas delas, Sarah e Roxanne, para me excitar. Só que o que trouxe a diversão de volta mesmo foi o Francis, que não era 25, mas não fazia feio a "Black muscles". Foi no dia 15 de junho que aconteceu a primeira vez e, desde então, eu só trepo se o Francis estiver presente. Não nos beijamos e eu nem pego no pau dele. Só peço - e pago - para ele me comer enquanto eu como ou chupo minhas amigas especialistas. Tudo isso com 36 anos. Imagina se o português da banca fica sabendo!
terça-feira, julho 20, 2004
Onde foram parar os pipoqueiros?
Bom o tempo onde a gente pedia uma pipoca na rua, na frente do cinema, e o máximo que ouvíamos era um "sal ou doce" sem entonação. Era tão barato que dava até para comprar bala e refrigerante. O cinema começava ali, na rua mesmo, comprando um saquinho de pipoca.
Mas aí veio a modernidade. E como eu a odeio! Os cinemas de rua praticamente acabaram. Quando moço, eu pegava um ônibus até Madureira com a grana contadinha para pagar a passagem, a sessão e a pipoca. E ainda sobrava um troco para comprar bala ou para colocar no porquinho. Bons tempos. Eu adorava os filmes do Trapalhões, aqueles da época do Mussum e do Zacharias. Eram péssimos exemplo para a criançada, um cachaceiro e um viado, e, acredito, justamente por isso eu os adorava. O Dedé sempre foi bobão demais e, dele, só as acrobacias eram bacanas. E o Didi depois de um tempo, depois de se perceber que ele ia se dar bem no fim, foi perdendo a graça.
Hoje não há mais filmes dos Trapalhões - só o Didi fazendo caricatura dele mesmo - e pouco se encontra pipoqueiros na rua. Assisti a Homem Aranha 2 num desses multiplexs. A sala é ótima, consigo esticar meu 1,86 metros na cadeira sem bater na da frente e sem atrapalhar a visão do pobre coitado que está atrás. Uma maravilha. Porém, na hora de comprar um saquinho de pipoca, um simples saquinho de pipoca, esses cinemas mostram quão terríveis são.
Olá, eu quero uma pipoca e um refrigerante. São dois produtos, um único pedido. Impossível ser mais direto do que isso. Mas aí começam as perguntas. Qual o tamanho? Querem que eu escolha entre quatro opções. Você quer manteiga? Quer cheddar? Pela promoção do cinema, por R$ 2 a mais você leva uma barra de Snickers, você quer?
Respondo pacientemente a todas as perguntas. Mas não é só. Olha, se você comprar uma promoção combo, que inclui dois refrigerantes pequenos e uma pipoca média, vc só vai pagar R$ 0,50 a mais do que comprando uma pipoca média e um refrigerante médio. Você não prefere?
Eu estava perdido, nem sabia mais o que escolher e nem lembro o que eu escolhi. Sei que depois de tanta confusão a pipoca veio com manteiga e minha mão ficou toda lambuzada. Tive que limpar na calça.
Perdi uns cinco minutos para comprar minha pipoca e ainda paguei mais de R$ 10. Queriam, ainda, que eu levasse de brinde um pôster imenso para casa. Ou eu estou ficando velho, ou o mundo está ficando muito complicado.
Desncontros - Tomo Quinto
quinta-feira, julho 15, 2004
Eu queria ter um milhão de amigos
Apesar de aparentemente bobo, o orkut é uma baita invenção da internet. É a verdadeira personalidade virtual que já tentaram criar com e-mails, icqs, chats e blogs, mas nunca conseguiram. E, não, não pensem que a única diferença é a foto. Meu e-mail do Mac já vai com uma bela fotinho para aqueles que também usam Mac - aliás, a mesma que aparece no meu orkut. O que mais impressiona são as possibilidades de exposição de personalidade que, antes, nunca foram tão complexas.
O que nós fazemos, todos, é uma farsa. Brincamos de representar quem gostaríamos que os outros achassem que fossemos. Padres, putas, jornalistas, técnicos do judiciário: santos, ninfomaníacas, doutores e surdos. Tudo pura representação. Para o dia-a-dia é justamente essa falsidade que importa, é ela que o mundo vê e com quem o mundo relaciona. Basta caprichar na atuação.
É bem mais fácil representar quem se gostaria que fosse no mundo virtual, do que no real. Os chats são um belo exemplo. As pessoas podiam inventar personalidades, nomes, sexo, peso e altura. A representação, porém, perigava cair num ridículo, numa falsidade pouquíssimo crível. Os chats, tão populares outrora, acabaram virando uma brincadeira de projeções oníricas - positivas ou negativas -, sem o mínimo compromisso com a realidade. Banalizaram-se e, acredito, quase ninguém deve levar a sério a Loirinha19Rj perguntando "oi, quer tc?"
O grande sucesso do orkut talvez esteja justamente num compromisso maior com a representação do mundo real. Sim, alguém pode colocar uma foto de um astro de cinema, inventar um nome e dizer que adora neo-realismo italiano, mas e a graça de encontrar amigos, ex-namoradas e entrar na comunidade do colégio? Com nome falso, a Silvia, uma gostosa a quem dedicava-se muitos cultos a Onã na sétima série, não vai se lembrar de você. Reencontrar amigos, portanto, apesar de secundário, também é uma das graças do orkut.
Daí, se o internauta não esconder nome ou foto, fica impossível distanciar-se muito da representação do mundo real. Uma mentira muito grande, a não ser intencionalmente jocosa, só faria seu autor passar por babaca perante os amigos. Isso não há quem queira.
Com toda essa proximidade do mundo real, há também seus contratempos. Duas pessoas já vieram me falar, brincando, que uma das fotos no meu álbum do orkut é um pouco "comprometedora". A foto mostra umas carreiras de coca, uma maconha prensada, um copo de caipirinha, uma maço de cigarro de baixos teores e um ovo de codorna. Foi tirada em Maceió, na Universidade Federal de Alagoas, em 1999, num Encontro de Estudantes de Comunicação. Todas as drogas eram de uns mineiros e eu apenas tirei a foto (até porque, fala sério, eu odeio cigarro de baixos teores). Porém, os comentários me obrigaram a colocar um adendo na descrição da foto. Quer prova maior que este orkut é mesmo imbatível?
Aqueles que me conhecem mais no mundo real do que no virtual (poucos, pouquíssimos) darão risadas da foto e entenderão o porquê de ela estar ali. Os outros (quase todo mundo) podem ter uma impressão errada.
Uma falha, na segunda situação, seria minha: tanto neste exemplo no mundo virtual, quanto numa possível representação equivocada no mundo real. Se você não entende o que eu estou escrevendo, ou estou pouco me importando para sua compreensão ou estou escrevendo mal. Em ambos os casos, eu estaria errado.
Acho que nem na época em que eu era radical e chamava todas as meninas de piranhas nas listas de discussão eu me preocupei tanto com o que uma brincadeira na internet pode provocar. Isso, admito, o orkut conseguiu provocar.
Daqui, peço a todos, procurem um tal André Miranda no orkut e no scrapbook respondam para que diabos serve aquele ovo de codorna na porra da foto!!
terça-feira, julho 13, 2004
Marianinha me olhou pelo rabo dos olhos, senhora de si e mesmo de mim, um tanto desnorteado por ela. Ela estava rindo de mim, da minha barriga sedentária, do molar inferior torto, da respiração ofegante, do homem tão frágil que eu estava sendo diante dela. Sorria seus dentes dentes alvíssimos de Audrey Hepburn como se estivesse certa de que estava tratando com um vassalo, aquele homem fragilizado que apenas se sabia vivo através de sinais que ela lhe mandava do alto de seu controle.
Em seus olhos e dentes eu enxergava a minha derrocada, as gotas de suor, a vista turva, os espasmos nervosos. Sabia que dali para sempre eu seria menos que um homem, talvez conseguisse a graça de ser um farrapo a mendigar em ruas e vitrines pela compaixão anônima. Seria ela quem determinaria meu desfecho, então contraí cada músculo para não me dar por vencido de todo sem resistência digna de memória. Diabos, um homem não consegue vencer todas as suas batalhas.
Mas aquela Marianinha não apresentava dúvidas ou preocupações no porte, a coluna erguida em leve curvatura que salientava as ancas e a respiração pausada. Decerto não passava por sua cabeça se eu apenas tentava sobreviver a ela, se eu ainda teria forças para caminhar, e se tivesse forças para tal, se conseguiria arranjar um caminho próprio. Ela tão somente executava a sua cena devagar, se demorava em cada curva como se fosse uma solista de jazz, esticava cada nota até o êxtase do silêncio para que a platéia absorvesse a música que soprava na tensão do ar a largos goles e descobrisse que cada cor nova revelada seria para sempre inédita, e sempre dela, Marianinha.
Antes que eu deixasse a morte me levar num último suspiro, sua mão me tocou o rosto de soslaio feito o rabo de seus olhos que me sorriam como nem as estrelas de Hollywood poderiam fazer e ela se deitou em flor ao meu lado, os olhos fechados e o sorriso de expectativa de criança na noite de Natal. Nem uma palavra dita, apenas a mão esquerda me chamando para si, para o dia que se apagava, para o perfume que havia dentro de seu mistério tatuado perto do umbigo. Seria a minha revanche, sorri renovado, com um sol em cada músculo que me sustentava diante dela. Marianinha teria agora a sua merecida lição.
segunda-feira, julho 12, 2004
Mais poesia, Surdo?
Sexo, poema de David Calderoni, roubado do Caderno Mais! da Folha de ontem.
Sexo não existe.
Precisa ser feito.
No homem, erigido.
Na mulher, cavado.
domingo, julho 11, 2004
Desencontros - Tomo Quarto
O menino brincava de bola num jardim cujo gramado trocava o colorido sem maiores cerimônias, corria atrás da bola e de repente tropeçava e caía, como só as crianças conseguem tropeçar, com a graça particular de sua queda infantil. Antes que desagüasse qualquer choro, uma mulher com todo o aspecto de mãe se ajoelhava frente ao menino e então lhe sorria antes de abraçá-lo. Jonas encostou a cabeça no travesseiro e dormiu, não houve muitas delongas. Conseguia alcançar o sono com pouquíssimos carneirinhos e sempre mergulhava neste sonho, um menino perseguindo uma bola e sendo amparado pela mãe, e assim sucedia até que o sonho nada mais fosse, sobrevindo a face desconhecida de horas de descanso desacordado, onde o corpo executa maravilhas mil sem que saibamos de nada, de olhos fechados alguns roncam, outros falam e há aqueles que andam pela casa sonâmbulos. Jonas apenas dormia, os olhos fechados, o corpo recolhido em concha, a boca quase aberta e o silêncio que tomava conta de seu quarto. A menina ficou observando sentada ao lado dele com a impressão de que não entendia ou não acreditava naquela paz, talvez seus olhos estivessem na calma de Jonas mas as suas exasperações que habitavam fora daquele quarto a impediam de deitar aninhada no rapaz e se contagiar por aquele sono aparentemente tão suave. Estavam os dois nus sobre a cama, a noite adentrava tímida pelo quarto e tracejava as curvas daqueles corpos sem muita precisão. Dentro daquele sono, o corpo de Jonas descansava de uma noite ímpar, havia trabalhado bastante nas horas anteriores entre fluidos e palavrões no corpo de Melissa, a menina que não dormia a seu lado e acariciava as suas costas com as mãos cheias de dúvidas se deveriam tocar aqueles músculos ainda, músculos que a fizeram rir e chorar, calar e gritar, delirar e sufocar. O descanso ocorria com satisfação extra, o corpo estava realmente cansado mas um cansaço singular, o suor exalava mel, a dor tinha gosto de chocolate branco. Jonas bem o sabia que aquele acre em suas mãos era Melissa que estava gravada ali, alguém que ele não conhecia mas que se apresentou com um sorriso e não desvencilhou sua mão da dele após alguma conversa e um par de croissants, porque Jonas gostava da sensação de sentir o calor do salgado perto de sua boca após os seminários na faculdade e tratou de pedir um para ele e outro para a menina capaz de sorrir ao falar de nomes complicados como Wittgenstein. Acabaram na cama de Jonas porque ele simplesmente não acreditava que ela merecesse o tempero de tristeza que aparecia dentro de cada palavra, gesto e sorriso que a compunham, e a compunham tão bem. Mesmo com o sexo, Jonas percebia que a entrega tinha um quê de despedida, cada suspiro era um ensaio de adeus e aquela Melissa pedia por mais como se não mais fosse ter. Mal se falaram depois, deixaram seus corpos na intimidade do silêncio com as janelas abertas e ele dormiu, certo de que pela manhã aquele sorriso tão triste ganharia alguma outra cor além da púrpura. O corpo de Jonas em concha na palma de mão de sua mãe num jardim longe daquele quarto nada percebeu do corpo de Melissa que se vestiu e deixou aquele sono para ele, indo embora sem deixar vestígios além do cheiro acre e triste numa cama que não lhe pertencia.
segunda-feira, julho 05, 2004
Desencontros - Tomo Terceiro
Eriberto olhava para o televisor mas o brilho da tela não passava de manchas que piscavam como que vozes em meio a uma gritaria diante de seus olhos. Promoções imperdíveis, bundas imperfeitas demais, silicones dentro de lingeries, corpos que recebiam tiros de revólveres, bocas e línguas que se comungavam, garrafas e latas e loiras de cevejas, homens e mulheres engravatados, tudo se misturava, era apenas um plasma que fazia barulho mas não exercia alguma atração particular aos olhos do homem, que por vezes observavam a eletrostática viva por meio da cachaça engarrafada que Eriberto tinha em mãos; o homem interpunha o frasco entre seus olhos e o mundo mágico da tevê e brincava com a imagem se liquefazendo em distorções mil e então mandava boa parte daquele conteúdo goela abaixo, crianças desaparecidas desciam junto com pastores eletrônicos lhes queimando a garganta e caindo pesados no estômago. A filha decerto ainda estava na rua, se é que ela ainda morava junto com ele, coçava a calvície para tentar lembrar se a menina já havia ido embora ganhar o mundo e enxergava por sobre a mesa no meio da sala coisas dela, uma blusa, um prendedor de cabelo, um sorriso esquecido anos atrás. Levantou-se do sofá e deixou a garrafa na mesinha do telefone, de onde uma luminária barata iluminava o ambiente à maneira de Rembrandt, precisava tomar um banho, a filha não gostava quando ele voltava da oficina e sujava a casa e o cheiro de óleo e graxa começava a incomodar, foi então que se deu conta que a filha ainda morava com ele, a casa estava arrumada. A menina era tudo o que lhe havia restado de grato na vida, sua esposa morrera atropelada há anos e desde então Eriberto não conseguia mais ter vontade de sorrir aos domingos nem rezar a Deus, só queria ficar embriagado a maior parte do tempo possível. Demorou um pouco no banho porque a água fria lhe escorrendo pelas faces gotejavam lembranças emudecidas, esfregou com força as mãos e o rosto para limpar as manchas do ofício e lágrimas que se agarravam a lembranças de um tempo que ele não acreditava mais ter vivido, não poderia ser ele o homem que afagava o rosto daquela mulher, não lembrava de ter mãos para afagos, não sabia para que tinha mãos e com as que tinha temia machucar o silêncio que a filha guardava diante dele, vez ou outra arriscava, com medo de criança no escuro, ir ao quarto da menina verificar se ela dormia, e se dormia bem e então pousava sua mão no rosto dela, a esposa ficaria orgulhosa de ver como a cria deles estava crescida, como era bonita. Após o banho, vestiu o pijama, programou o despertador para o dia seguinte e voltou a tevê, entre goles da cachaça e pitadas no cigarro. E desligou suas lembranças no aparelho que brilhava.