Inventando Dogmas
André é repórter. Leandro é assessor. Ambos são pagos para relatar os fatos do cotidiano e ocupam boa parte de seu tempo nisso. Mas não aqui. As narrativas ficcionais aqui alocadas são exatamente o que parecem: ficção. Se lhe apetecem parecência com o mundo real e cão, entre num curso de interpretação de textos, consulte seu oftalmologista ou vá ler Diário de Um Fescenino, de Rubem Fonseca. Se não resolver, você é um idiota e André e Leandro nada têm a ver com isso.
sexta-feira, julho 30, 2004
Desencontros - Tomo Sexto e final
Melissa ficou um tempo na calçada sentindo o vento de leve lhe dançar na saia no vestido, entre os dedos das mãos, no ruivo dos cabelos longos. Descalçou os saltos para entrar em casa sem fazer barulho, era alta madrugada, o pai que morava com ela havia perdido a esposa e certamente estava dormindo na sala com a televisão ligada, o cigarro talvez aceso e a garrafa decerto aberta. O brilho do televisor saía pela janela da sala. Girou a chave em silêncio, passou o trinco sem respirar, sete passos felinos e macios, desligou a tevê, fechou e recolheu a garrafa não sem antes dar uma golada macia que era uma cachaça de Paraty e agradeceu que o cigarro agora já apenas uma brasa não incendiou a casa. Observou o pai que dormia e reparou que dormindo ele não aparentava ser um homem destruído, que vivia mais por inércia que por tesão. A mãe morrera havia seis anos e meio e desde então ele largou as amantes, o futebol, os amigos e a religião para ficar em casa vendo programas de auditório, fumando e se embriagando após o expediente na oficina à espera da filha voltar da festa, do mercado, do namorado, do curso, da faculdade, do trabalho. Se tornou um homem idoso demais para seus nem cinqüenta anos completos e ignorava que por conta dele, Melissa achava que o amor era algo desgraçado demais para ter finais felizes. A filha o ajeitou no sofá, lhe beijou a testa e adentrou no quarto, onde se trancou, tirou o vestido e se deixou cair no chão mesmo para chorar. E chorou, como se as lágrimas fossem tudo o que havia restado de si. Queria desistir de tudo, do pai, de Heitor que dormia sem desconfiar que ela chorava longe dele, de Jonas que não desconfiava nem de Heitor, do emprego na livraria, da bolsa na faculdade de Filosofia. Mas desistir também era muito difícil, era tão difícil quanto lutar e havia menos de uma hora que saíra na calada do quarto de Jonas, igualmente descalça que o rapaz dormia num sono que ela nunca havia conhecido em si, um sono que Heitor nunca havia lhe proporcionado e ela fugiu com medo de acordar ao lado de Jonas, poderia se apaixonar por ele e aí não saberia mais o que fazer, nem por quem chorar. Dormiu assim que escalou a cama e se achou entre as cobertas, torcendo para não acordar e aquela noite, aquela vida, aquele choro tão confusos não terminarem nunca.