terça-feira, julho 13, 2004

Marianinha me olhou pelo rabo dos olhos, senhora de si e mesmo de mim, um tanto desnorteado por ela. Ela estava rindo de mim, da minha barriga sedentária, do molar inferior torto, da respiração ofegante, do homem tão frágil que eu estava sendo diante dela. Sorria seus dentes dentes alvíssimos de Audrey Hepburn como se estivesse certa de que estava tratando com um vassalo, aquele homem fragilizado que apenas se sabia vivo através de sinais que ela lhe mandava do alto de seu controle.

Em seus olhos e dentes eu enxergava a minha derrocada, as gotas de suor, a vista turva, os espasmos nervosos. Sabia que dali para sempre eu seria menos que um homem, talvez conseguisse a graça de ser um farrapo a mendigar em ruas e vitrines pela compaixão anônima. Seria ela quem determinaria meu desfecho, então contraí cada músculo para não me dar por vencido de todo sem resistência digna de memória. Diabos, um homem não consegue vencer todas as suas batalhas.

Mas aquela Marianinha não apresentava dúvidas ou preocupações no porte, a coluna erguida em leve curvatura que salientava as ancas e a respiração pausada. Decerto não passava por sua cabeça se eu apenas tentava sobreviver a ela, se eu ainda teria forças para caminhar, e se tivesse forças para tal, se conseguiria arranjar um caminho próprio. Ela tão somente executava a sua cena devagar, se demorava em cada curva como se fosse uma solista de jazz, esticava cada nota até o êxtase do silêncio para que a platéia absorvesse a música que soprava na tensão do ar a largos goles e descobrisse que cada cor nova revelada seria para sempre inédita, e sempre dela, Marianinha.

Antes que eu deixasse a morte me levar num último suspiro, sua mão me tocou o rosto de soslaio feito o rabo de seus olhos que me sorriam como nem as estrelas de Hollywood poderiam fazer e ela se deitou em flor ao meu lado, os olhos fechados e o sorriso de expectativa de criança na noite de Natal. Nem uma palavra dita, apenas a mão esquerda me chamando para si, para o dia que se apagava, para o perfume que havia dentro de seu mistério tatuado perto do umbigo. Seria a minha revanche, sorri renovado, com um sol em cada músculo que me sustentava diante dela. Marianinha teria agora a sua merecida lição.