Desencontros - Tomo Terceiro
Eriberto olhava para o televisor mas o brilho da tela não passava de manchas que piscavam como que vozes em meio a uma gritaria diante de seus olhos. Promoções imperdíveis, bundas imperfeitas demais, silicones dentro de lingeries, corpos que recebiam tiros de revólveres, bocas e línguas que se comungavam, garrafas e latas e loiras de cevejas, homens e mulheres engravatados, tudo se misturava, era apenas um plasma que fazia barulho mas não exercia alguma atração particular aos olhos do homem, que por vezes observavam a eletrostática viva por meio da cachaça engarrafada que Eriberto tinha em mãos; o homem interpunha o frasco entre seus olhos e o mundo mágico da tevê e brincava com a imagem se liquefazendo em distorções mil e então mandava boa parte daquele conteúdo goela abaixo, crianças desaparecidas desciam junto com pastores eletrônicos lhes queimando a garganta e caindo pesados no estômago. A filha decerto ainda estava na rua, se é que ela ainda morava junto com ele, coçava a calvície para tentar lembrar se a menina já havia ido embora ganhar o mundo e enxergava por sobre a mesa no meio da sala coisas dela, uma blusa, um prendedor de cabelo, um sorriso esquecido anos atrás. Levantou-se do sofá e deixou a garrafa na mesinha do telefone, de onde uma luminária barata iluminava o ambiente à maneira de Rembrandt, precisava tomar um banho, a filha não gostava quando ele voltava da oficina e sujava a casa e o cheiro de óleo e graxa começava a incomodar, foi então que se deu conta que a filha ainda morava com ele, a casa estava arrumada. A menina era tudo o que lhe havia restado de grato na vida, sua esposa morrera atropelada há anos e desde então Eriberto não conseguia mais ter vontade de sorrir aos domingos nem rezar a Deus, só queria ficar embriagado a maior parte do tempo possível. Demorou um pouco no banho porque a água fria lhe escorrendo pelas faces gotejavam lembranças emudecidas, esfregou com força as mãos e o rosto para limpar as manchas do ofício e lágrimas que se agarravam a lembranças de um tempo que ele não acreditava mais ter vivido, não poderia ser ele o homem que afagava o rosto daquela mulher, não lembrava de ter mãos para afagos, não sabia para que tinha mãos e com as que tinha temia machucar o silêncio que a filha guardava diante dele, vez ou outra arriscava, com medo de criança no escuro, ir ao quarto da menina verificar se ela dormia, e se dormia bem e então pousava sua mão no rosto dela, a esposa ficaria orgulhosa de ver como a cria deles estava crescida, como era bonita. Após o banho, vestiu o pijama, programou o despertador para o dia seguinte e voltou a tevê, entre goles da cachaça e pitadas no cigarro. E desligou suas lembranças no aparelho que brilhava.