Michelle tinha os olhos acinzentados e gostava de estar por cima quando gozava. Então ela me oprimia o peito e mergulhava em meu derradeiro suspiro, antes de se adornar sobre mim e cantarolar versos do Chico para finalmente dormir. Nunca repetia os versos, pelo não enquanto sobre mim. O sono nos abraçava suado e nu, o Rio, cidade maravilhosa, é antes um lugar quente. Eu lhe compunha sonetos que nunca eram mostrados nas horas mais folgadas do serviço, razão pela qual era conhecido entre a camaradagem como Poeta. Havia ganho um exemplar bonitão dos Lusíadas natais passados por obra e graça de meu pai e, para impressionar o velho, quis ser o Camões de minha própria armada. Impossível esquecer os olhos dele diante do soneto que fiz para as suas bodas de ouro, aquele longo abraço, aquele longo sorriso, aquela longa mudez, aquele longo gole de Balla 12.
Eu usualmente saía de casa para o serviço em horários ingratos. A cabritinha não se apoquentava porque as contas eram todas pagas e eu, modéstia a parte, me fazia presente quando necessário. Michelle só exigia um beijo de despedida e pouco barulho para que ela não despertasse. Eu partia em passos de bichano no meio das trevas do nosso quarto, tão desnudas quanto a minha pequena dama. No verão, eu era capaz de farejar o cheiro dela em cada canto do apartamento, o animal dentro de mim despertava e fazia o corpo funcionar melhor, talvez na tensão de respirar novamente Michelle.
O meio-período de expediente na oficina de Lopez, um chileno tão gordo quanto gago, era apenas uma grande vitrine para justificar o sorriso de sua esposa e filhotas nas colunas sociais. Pedro Lopez, El Abufo, como era conhecido desde magro, operava uma vasta rede de serviços contraventivos dedicados às pessoas de bem, capazes de bancar pequenas extravagâncias pelo prazer ou necessidade do proibido. Cassinos, narcóticos raros, virgens, transplantes urgentes e outros atrativos que incluíam até rituais satânicos eram passíveis de negociação com o gago que aceitava Visa e Mastercard e parcelava suas benfeitorias em até cinco vezes dependendo do cliente. A despeito de um cacoete quase inconsciente de resgatar o gestuário de Marlon Brando e demorar em demasiado para proferir períodos verbais curtos, Don Abufo não dava margens para naufrágios em suas empresas, fossem elas lícitas ou não. O homem era um capitalista por natureza.
É aí que apareço na coisa toda. Mas não sozinho. O chileno tinha sob suas ordens seis hombres de confiança para fazer o serviço sujo, sus perros, como nos chamávamos. Alexandre Nariz, Vinícius Bito, Fábio Bebê, Pedro Hormônio, Orlando Grind e eu, o Poeta. Assim como eu ganhava a vida como subgerente de relações na oficina especializada em carros alemães, um emprego com um belo título, bom salário e poucas ocupações dentro de um horário flexível, os demais perros possuíam rotinas semelhantes. El Abufo facilitava a vida de seus cães de guarda. Bito, o melhor de nós, tinha inclusive seu talento reconhecido como como romancista nas horas ímpares. Operávamos em duplas ou trios, semanalmente, em geral achacando devedores ou tratando assuntos menos sociáveis com os fornecedores. Daí a ingratidão do horário de trabalho.
O hábito de respirar a madrugada nos facilitava a viver como fantasmas da noite. Na maior parte do tempo, estávamos esperando. Alguém, algo, uma porta, um sinal fechar, um grito. Era a pior e a melhor hora do serviço porque, em última instância, éramos matadores profissionais. Insones. Eu cheirava a lembrança de Michelle, sua carne cheirosa de morder e delirava sonetos. Tinha me habituado a escrever em carros obscurecidos e diante da troça dos demais. Conversávamos para passar o tempo e não matarmos uns aos outros. Atirar em alguém, seja quem for, é algo sujo. Envolve sangue, pólvora, barulho, vísceras. De forma que o ideal era assustar a alma infeliz que atrasava a vida do gordo para que ela se conscientizasse que o melhor era resolver a sua parte sem mais delongas.
O coração de minha garota pulsava no interior de cada projétil que eu alojava pacientemente no pente da minha automática. Hormônio tragava seu cigarro cantarolando uma música natalina e Nariz reclamava ao volante. Esse filho da puta me deixou esperando dez minutos na outra esquina porque tem vergonha de cagar na casa da namorada. Precisou usar um boteco fedido. Verme. Ele ria, o Hormônio. Eu acompanhava a risada. Michelle ficou me olhando sair pela penumbra, coisa que não fazia. Pediu que eu voltasse para ela quando resolvesse o serviço, beijou e mordeu meu lábio. Sangrava um pouco, mas eu gostava da sensação. Era como se ela fosse uma ferida aberta em mim, poeticamente falando. O carro encostou e nos pusemos a esperar. Hormônio apagou o cigarro e disse que um homem tinha que ser muito sujo para usar a casa da namorada na hora de fazer merda, e ele era um homem limpo. Nariz voltou a praguejar, eu guardei a arma no coldre. Era janeiro e eu podia ouvir a respiração sonolenta de minha Michelle no outro lado da cidade.
O carro que aguardávamos estacionou no quarteirão em frente. Foi rápido e barulhento; Nariz arrancou na direção do alvo e estacionou ao lado, ela pulou em meu pescoço feito naja, eu e Hormônio descemos engatilhados e rendemos o velho. Hormônio perguntou se ele tinha o dinheiro mas um gato havia comido a língua dele. Eu a joguei na cama e o animal fez o resto. Ela me olhou e não recitou nada de Chico, perguntou se eu estaria embaixo dela quando ela despertasse. Eu disse que era um homem que devia obediência a outro homem, e que só ele poderia mesmo responder àquela pergunta. Ela sabia onde eu guardava a arma e adormeceu olhando para o lugar com pequenas lágrimas. Ele provavelmente se borrou todo outra vez, disse Nariz já com o velho no banco de trás sendo extorquido. O velho era um ex-jogador de futebol que precisava do pôquer na sua vida. Costumava perder e demorar a pagar, razão pela qual alguns de nós já o conhecíamos. Dessa vez havia se estropiado de outra maneira. Não havia perdido no jogo, mas resolveu inventar de armar uma sacanagem em sua casa de praia com seus amigos de concentração, e pagou adiantado por garotas e garotos acompanhados de alguns quilos de pó. Claro que ele e seus amigos meteram os pés pelas mãos, do contrário, estaria agora ninando Michelle e não o ameaçando com uma arma.
Ele nada dizia, mas uma das garotas não tinha voltado da festinha e os garotos estavam todos com queimaduras nas costas. El Abufo teve que pagar o prejuízo e agora queria o débito. Ou el viejo muerto, disse com fúria nos olhos. O animal rosnou em minha língua, si, señor, muerto. Mas ele nada disse, apenas se borrou todo quando o raptamos. A viagem até um local ermo para que ele fosse desaparecido foi longa e fedida. Pusemos o velho para cavar a própria cova, um último recurso funcional. Ninguém que se preze quer a morte e nós, matadores, preferimos não matar. É difícil explicar, mas tem algo na morte que te mata aos poucos. Você sente a contagem chegar mais próxima da sua vez e nós, particularmente, adiantávamos a contagem. Vocês sabem, a vida é uma grande roleta russa. O velho cavou e nada falou ou implorou ou cedeu. Hormônio e Nariz observavam e eu, que iria matá-lo, rabiscava outro soneto para amansar a fera que se atiçava entre cada verso. Sangue e fogo. Ajoelharam-no e fui ao trabalho. Encostei a arma na testa do homem e ele não fechou os olhos, não gritou, não saiu correndo. Não derramou uma lágrima. Que diabos? Olhei fundo nele e engatilhei. Ela me mordeu até arrancar um pedaço, por isso arranquei um pedaço dela também, a puta. Devia ter doído no velho. A fera rugiu e partiu a cabeça dele em duas, o sangue me sujou todo, sujou até os lençóis onde Michelle e seu sexo me esperavam. Eu a via com suas madeixas de trigo na cova, dali a pouco a madrugava amanheceria. Sobravam algumas horas de sono na minha garota.
É verão, pensei enquanto o enterrávamos. É verão, ela vai levantar mais cedo e montar sobre mim novamente. Talvez ainda estivesse acordada como estava quando fechei a porta felinamente, o animal que ela ama não a deixa dormir. Iria dar o bote assim que eu entrasse no quarto. Seria uma longa noite aquela.