sexta-feira, fevereiro 27, 2004

Vitor era um apenas um homem que tentava sobreviver até o dia de amanhã sem se ferir demais na batalha. Via a guerra se perpetuar no coração da cidade com seus olhos de bandeirante e registrava tudo num caderno de capa branca, pouco mais que um bloco de notas, em letras corridas. Ele sabia que o tempo vencia todas as infantarias, mas nunca havia sido capaz de derrubar um poeta.

Quando dava umas seis horas da tarde, Vitor amava Irene. Amava, suspirava e prometia virar um homem de bem. Irene preta, Irene rosa, Irene carregava a primavera dentro daquele sorriso e coloria o asfalto por onde caminhava, o sol segurava-se mais um tanto no horizonte e só se punha após a última brisa do perfume daquela margarida contornar a esquina e então o trânsito engarrafava, o garçom atrasava o chope, o feijão aguava, se tivesse que chover chovia e Vitor piscava os olhos e pedia a conta. Pagava a conta, apertava a mão do garçom seu amigo que acompanhava a seu lado nas arquibancadas da vida as indas e vindas do rubro-negro da Gávea, olhava por um instante o asfalto engarrafado de pessoas que se xingavam e ameaçavam o mundo de morte e pensava que sua Irene, e só a sua Irene, poderia fazê-lo sorrir diante da catástrofe. Eu amo essa nêga, ele repetia consigo enquanto caminhava através dos destroços.

Irene tinha alguma coisa que Vitor desejava, um não sei o quê, um verso por escrever, uma palavra não traduzida, um comichão no cotovelo esquerdo. O restante do mundo certamente saberia onde morava seu desejo na crioula, pois nem o garçom camarada disfarçava o olhar dirigido ao traseiro da moça, que caminhava na cadência dos bambas. A palavra bunda em si podia ser lida nos passos da menina, redonda, salamaleque, os passos marcando o ritmo da pulsação da platéia: bum, bum, bum, bum. Vitor conseguia enxergar além do desejo óbvio e devia exatamente por isso que havia se apaixonado por aquela mulher que ele não sabia se chamar Irene, mas bem que gostaria de saber.

Foi numa quinta-feira nublada que Vitor conheceu a voz e o nome de Irene. Estavam na mesma fila que não andava no banco e meia-dúzia de meliantes entrou na agência anunciando o assalto. Todo mundo no chão. Irene à sua frente tremia e chorava baixinho, talvez rezasse uma Ave-Maria, mas disso Vitor não teve certeza. Viu o rosto aflito de sua pérola e pôs a sua mão sobre a dela. Ficaram se olhando tentando entender os gritos que os cercavam. Meu nome é Vitor. Ela tremia menos. Meu nome é Irene. Vitor sorriu e repetiu consigo mesmo Irene, é um bonito nome Irene. Irene respondeu que foi a sua mãe quem escolhera Irene, mas não sabia direito por quê. E fizeram silêncio, as mãos dadas, o chão frio e o gerente de joelhos com uma arma na cabeça com pressa.

Irene disse então que estava com medo. Vitor lhe disse que era só não olhar para os bandidos que ela sairia dali viva. Vitor não disse que ela não precisava ter medo pois ele a amava demais e que não deixaria nada acontecer a ela perto dele. Irene não teve coragem para dizer que gostaria de tê-lo encontrado noutro lugar, numa hora em que pudessem deitar de mãos dadas longe da guerra que não fazia prisioneiros. O gerente disse que não sabia o segredo do cofre, que era tudo eletrônico, informatizado e à prova de homens. Alguém gritou que a polícia estava chegando, já dava para se ouvir sirenes e logo começaram os tiros. Irene fechou os olhos e Vitor a abraçou, não havia mais nada naquele mundo que valesse à pena.

Quando meia-dúzia de balaços lhe perfuraram o corpo, Vitor nasceu de novo. A sua Irene estava viva embaixo dele e da guerra. A sua poesia estava viva em seus braços e nunca iria morrer.