sexta-feira, fevereiro 13, 2004

Olhou São Paulo pela janela e parecia quase Veneza, a tal cidade que desaparece um centímetro a cada década por conta da água. Não poderia ser tão ruim, sempre sonhara em visitar a cidade-postal italiana, andar de gôndola e inflar seu ego com o sentimento de que estivera ali, no mais belo dos desfortúnios. Vingaria seus pais por tabela, que não puderam ver as Sete Quedas por conta do Brasil Grande do General Geisel. Teria em seus olhos as sombras de uma cidade morta, quase um museu, mais que um santuário.

A chuva, que havia fraquejado durante a noite, voltou a falar grosso. Tinha a impressão de poder ouvir as águas milhas distantes, o céu havia escurecido e relâmpagos riscavam os corações embebidos de súplicas daquela quase Veneza que chafurdava em maus inventimentos na sua rede de drenagem e esgotos. Aquela cidade, tão metrópole, estava à mercê de reações físico-químicas ou, como diria seu vizinho batista, da ira do Divino. Percebia o calçamento da sua rua se diluindo na chuva, a água tomando posse do local e das pessoas, erodindo a capital.

Havia um certo senso de ironia naquela situação. Pobres e ricos igualmente ilhados em esquinas ainda não tragadas pela chuva, havia mesmo aparecido na tevê dois homens que se alojaram no teto de um desses carrões importados na espera da água baixar ou do socorro aparecer. Decerto que os mais bem nascidos estavam melhor abrigados em seus bairros e condomínios fechados, mas a verdade é que a cidade castigava de mesma forma quando podia, sem distinção de classe. Ademais, a mídia não cansava de noticiar, o Sertão estava virando mar como haviam anunciado em priscas eras, as chuvas também desgraçavam a vida severina. Aquela São Paulo tão nordestina também se inundava e, até onde os olhos de Marie vislumbravam naquele aguaceiro que fazia da rua um córrego, ser Matarazzo ou Simonsen não estava muito distante der ser Nazário ou Silva; a solução era olhar o céu e arregaçar as barras das calças.

Reparou que Noel estava acordado pelas notas carinhosamente dedilhadas no violão. No minuto seguinte, lembrou-se que era esposa e futura mãe do filho que esperava daquele negro que rabiscava um sambinha de Jorge Ben para a alegria daquela manhã. Ficou sabendo da gravidez não tinha nem duas semanas, e ainda não sentia nada de especial na maternidade, se bem que o feto ainda devia ser um mero caroço dentro dela. Assim que recebeu a notícia da gravidez, decidiu que não contaria para Noel até ser inevitável. Precisava ter certeza de que queria ser mãe do filho dele, aceitar que pertenceria àquele homem para dali em diante. Noel deixou a viola entre os lençóis e caminhou até Marie, diante da chuva e da cidade que se afogava. Ele estava de folga. O temporal inviabilizava o funcionamento da reparticão pública onde assinava o ponto como fiscal, emprego que lhe garantia um bom sustento. Beijou-a para desejar um bom dia e deixou seu corpo estacionar no corpo amado, com a sensação da carícia em suas mãos repousadas no ventre dela.

Noel sabia que Marie pouco falava e que ela se comunicava com o mundo usando mais o seu corpo do que suas palavras. Gostava desses mistérios que sua garota tinha. Foram vizinhos no mesmo prédio por dois bons anos antes de suas bocas se encontrarem num elevador notívago. Casaram-se havia já três meses no civil, meio clandestinos, porque a mãe de Marie não suportava a idéia de ser avó dum tiziu. Marie dava aulas de literatura numa escola particular pela tarde e às terças de noite era professora voluntária de filosofia numa escola pública que ficava em seu quarteirão. Marie pensava que a filosofia também estava sendo levada para o brejo junto de carteiras e livros e lodo. Talvez alguns dos alunos fossem deparar com a filosofia no meio do entulho depois daquele caos e coçariam a cabeça, entreolhando-se, e que diabos faremos com esse monte de pergunta agora? Tudo, ela responderia geniosa, tudo menos retórica.

Marie acariciava Noel e suspirava outro homem. O outro estava do lado de fora, bem abaixo do seu quinto andar, longe dela. E aquela chuva já durava quase uma semana, a metrópole doente, as aulas interrompidas, ele desaparecido. Era um de seus alunos, homem feito de seus vinte anos, pai de duas crianças e precisando de diploma de segundo grau. Como arrumava tempo para Platão ela também gostaria de saber. Charles, ele se chamava Charles e era mais que um amante que lhe esbofeteava o rosto e as ancas durante o intervalo das aulas, era uma transgressão em carne viva. O destino, ou a mão de Deus, ou o ocaso que freqüentam literatura barata e até gols da seleção portenha de futebol, pôs a impaciência física de Charles nas mãos de Marie menos de doze horas após as serenatas de Noel.

Mesmo sem ver, ela podia sentir o amor que tomava conta do negro junto a si. E, de súbito, não gostava da sensação de ser, ela também, parte integrante de Noel. Ele haveria de conseguir a recíproca um dia destes, talvez até já houvesse conseguido, e ela temia. Por isso, calava aquela criança que Noel acariaciava inocente. E torcia em silêncio para que ela não fosse dele, passaporte para a sua fuga daquele temporal que a deixava ilhada dentro daquele apartamento, nos braços daquele Noel.