A rua principal ou 5 minutos do trajeto entre Gávea e São Conrado
Mal cabem dois carros na rua principal. Rua de mão dupla. Talvez estrada ou avenida. Mas e daí? Um caminhão de carga pára e seus dois ocupantes, mulatos de 25 ou 26 anos, saem e descarregam alguns móveis para o interior de uma luxuosa loja de móveis localizada na rua principal. O trânsito fica lento. O motorista do 546 parece impaciente: passa a mão na semi-careca e começa a olhar para o lado. Como, neste momento, não passam mulatas rebolando, o motorista do 546 está impaciente. Na rua principal, onde ainda mal cabem dois carros, minha Parati 1.6, ano e modelo 2000, e um ônibus disputam a passagem ao lado do caminhão de carga. Uma kombi pertencente a uma dessas malditas cooperativas de kombis buzina atrás de mim. "Vai logo", filosofa o motorista da kombi, sujeito mulato de 25 ou 26 anos. "Vou por onde, porra?" é a pergunta que humildemente faço em silêncio. Aquela cidade não é minha terra. Acho melhor não contrariar seu filósofo de forma tão rude. "Mas senhor, não há espaço por onde meu veículo possa passar." O filósofo se calou, provando que minha escolha fora adequada.
A rua principal é bastante íngreme. Estamos num morro, afinal. A curva, pela qual meu carro já deveria ter passado há dois minutos e meio caso o caminhão não estivesse parado em frente àquela loja de móveis ou um 546 não estivesse no caminho contrário, é fechada. Uns 30 ou 45 graus. O ônibus seria obrigado a inverter a mão para passar pela curva. O motorista já havia começado a trajetória, mas esbarrou no caminhão. Algumas pessoas, transeuntes por falta de opção e pedestres por falta de dinheiro, caminham ritmados pelas calçadas, pela rua principal, por dentro das lojas e pelas varandas das casas. Não parecem se importar com aquele caminhão parado em frente à loja de móveis. Todos sorriem. Também não se importam com as dúzias de moto-táxis que sobem calçadas e pegam a contra-mão. Para mim, forasteiro, parece arriscado. Nem pilotos nem passageiros se importam. Nem uns nem outros usam capacetes.
O impasse dura alguns minutos. Uma verdadeira batalha pelo direito de passar antes do outro. Minha parati ou o 546? O anjinho me diz que, caso eu já tivesse permitido a passagem do ônibus, eu também já teria passado.
"Onde está seu orgulho, cabrón?", pergunta o diabinho.
Não sou daquela cidade, mas ainda sou brasileiro. Machista. Orgulhoso. Teimoso. Insisto alguns segundos acelerando com o pé direito levemente o automóvel. O pé esquerdo, quase por vontade própria, faz questão de frear. O motorista do 546, mulato semi-careca de uns 25 ou 26 anos, não muda o semblante. Coça a cabeça e olha para o lado.
Reflito. Já se passaram três minutos e quarenta e dois segundos. A guerra logo vai explodir. A kombi recomeça a buzinar. O ônibus também. As pessoas sorridentes da rua principal, transeuntes, mulatas de 25 ou 26 anos, continuam sua dança. O rapsodo esbraveja "lupa só paga um real, lupa só paga um real". As buzinas não são mais ritmadas. Mas também não perderam o compasso. Concidem freneticamente num som constante. O clímax se aproxima. Quatro minutos e seis segundos. O motorista da kombi ameaça saltar, mas teria que largar sua buzina.
Engreno a ré da parati.
Não estou mesmo com pressa é a frase que embala meu ego como auto-consolo típico de brasileiro - macho, sim, senhor. O 546 passa. Seu motorista continua coçando a semi-careca e olhando para o lado. Os ocupantes do caminhão continuam descarregando seu lar. O motorista da kombi pára de buzinar e acompanha sedento o quadril de uma mulata que atravessa a rua principal. E os transeuntes continuam sua dança. Todos 200 mil habitantes são mulatos e têm 25 ou 26 anos. Eu não. Sou um forasteiro playboy de 22 anos. Nunca andei de 546, de 591 ou de moto táxi. Nunca li o Katano, nem o Correio Zona Sul. Fiz bem em desistir daquela batalha na rua principal.