sexta-feira, fevereiro 28, 2003

O amor de cada um (III)

Maurício tinha 11 anos e estava na 5ª série. Ele gostava de jogar bola, de soltar pipa e do sorvete de morango da Kibon. Era fã do Ronaldinho e de seu avô, Emanuel, um senhor risonho que adorava contar histórias e brincar com os netos. Maurício não tinha a mínima idéia da idade de seu avô, mas sabia que ele era ator, ou algo parecido.

Em agosto, bem no meio do ano letivo, a turma 53 do Colégio Nossa Senhora das Dores recebeu uma aluna nova, que vinha de mudança. Era a turma de Maurício e a menina chamava-se Andréa, de 10 anos. O pai de Andréa era supervisor senior de uma empresa de cartão de crédito e acabara de ser transferido para a filial do Rio de Janeiro. A jovem, naturalmente, ficou triste em largar seu colégio e seus amiguinhos de Curitiba, mas não teve outra opção.

Maurício e Andréa mal se falaram até chegarem à 8ª série. Ele com 14, ela com 13 anos, acabaram ficando no mesmo grupo para uma pesquisa de história sobre a República Velha. O grupo na verdade era uma dupla e os jovens passaram bastante tempo juntos na biblioteca do colégio. Só os dois. Ambos eram alunos aplicados e não pouparam esforços para fazer o melhor trabalho possível.

Porém, no meio da pesquisa, de repente como costumam ser as histórias de amor, aquelas crianças apaixonaram-se e se beijaram. Estavam sozinhos na biblioteca, no canto esquerdo, perto da janela maior onde a bibliotecária, Dona Ivone, não conseguia enxergar. Batia uma brisa fria, Andréa reclamou, Maurício cedeu seu casaco e disse “eu acho que estou gostando de você”. Andréa assustou-se, o frio estranhamente aumentou, sua respiração fraquejou e ela não conseguiu responder. Mas o sentimento era recíproco e Andréa não interrompeu o desengonçado beijo do assanhado Maurício.

Era o primeiro beijo de Andréa. Maurício não. Ele já havia beijado duas ou três meninas nas festas juninas da paróquia onde fizera catecismo – era experiente, gabava-se. Maurício chegou em casa, ligou para seu avô e logo contou a novidade. Já Andréa não contou para ninguém. Teve vergonha.

Dali começaram a namorar. Seus sogros os adoravam, iam ao cinema, lanchavam e tomavam sorvete. Passaram a fazer todos os trabalhos do colégio juntos. Os professores tinham orgulho do casal, os colegas morriam de inveja e os amigos ardiam de ciúme do grude violento que aqueles dois tinham um com o outro. Algum tempo depois, 15 e 14 anos, os pais de Maurício viajaram, Andréa mentiu dizendo que ia ao cinema num sábado à tarde e eles transaram. Eram virgens, inexperientes, enrolaram-se um pouco com a camisinha, mas adoraram. Repetiriam tudo, com alguns incrementos, muitas vezes nos anos seguintes.

Para Andréa, o melhor da primeira vez deles foi a massagem que Maurício aplicou. Conselho de seu avô Emanuel, sempre confidente do rapaz. Já Maurício achou tudo meio estranho e só consegue se lembrar da cara que seus amigos fizeram quando ele lhes contou o ocorrido no dia seguinte. Ele se tornou o herói de seu grupinho por três meses. Aí outro menino, Marcelo, papou a filhinha mulata da empregada, aniquilando a exclusividade de Maurício e seu posto de herói.

Ele com 18, ela com 17 anos, passaram no mesmo vestibular e foram estudar arquitetura na UFRJ. Continuaram fazendo todos os trabalhos juntos, sentavam lado a lado e às vezes constrangiam os professores com beijos apaixonados durante as aulas. Para ser diferentes e se acharem especiais, comemoravam aniversário de namoro de 7 em 7 meses. Trocavam cartões, presentes e muitas juras de amor.

Formaram-se arquitetos, trabalharam bastante e seis anos mais tarde, 28 e 27 anos, conseguiram montar um escritório juntos. Já haviam se casado alguns anos antes numa bela cerimônia na Igreja Santa Luzia. Não quiseram festa e passaram sua lua-de-mel em Barcelona, Espanha, onde Andréa tinha uns primos.

Casados, eles adoravam ir ao teatro e a exposições de arte. Comiam com prazer e com palitinhos comida japonesa e nunca dispensavam um bom vinho – tinto seco, obviamente. Às vezes brigavam ou discutiam. Maurício então acordava cedo, comprava flores, fazia o café e acordava Andréa com aquela bela massagem que seu falecido avô Emanuel um dia o aconselhara. Sempre quando massageava as costas de Andréa, Maurício lembrava com um saudoso sorriso do dia em que descobriu que seu avô era presidente da Associação de Senhores Fantasiados de Papai-Noel do Rio de Janeiro.

E assim os anos de Maurício e Andréa foram passando. Enriqueceram juntos, os danados! 32 e 31 anos, eles tiveram seu único filho, Jorge, olhos da mãe, cabelo do pai. Durante a gravidez, Maurício adorava deitar sua cabeça no colo da esposa e ficava lendo seus romances preferidos em direção daquele barrigão de grávida. Aquele guri deve ter nascido jurando que era um Buendía! Nessa época já haviam parado há muito de contar e não sabiam mais há quantos 7 meses estavam juntos. Mas continuaram contando os anos e trocando cartões, presentes e muitas juras de amor.

Fizeram bodas de prata, Jorge casou, nasceu Lucas, o neto, eles se aposentaram e Jorge assumiu o escritório de arquitetura dos pais. Nas bodas de ouro o casal resolveu visitar novamente Barcelona. Nunca ficaram mais de um dia sem se ver, nunca viajaram um sem o outro e nunca traíram. Já velhinhos, morando sozinhos numa bela casa projetada por eles num condomínio fechado da Barra, adoravam ver gravações em vídeo de seu filho e de seu neto brincando no jardim. Também ficavam lendo as dúzias de cartões de amor que haviam trocado por toda a vida. Iam muito ao teatro e continuavam sem dispensar um bom vinho.

Alguns anos mais tarde, Maurício com 82, Andréa com 81, Jorge com 48, Lucas com 23, Andréa adoeceu. Câncer no pulmão daquela teimosa fumante de cigarros de baixos teores. O diagnóstico demorou e ela logo faleceu.

No dia seguinte ao velório, em sua casa, Maurício dispensou o filho, o neto e os amigos. Queria ficar sozinho. Colocou no cd player João Gilberto cantando “Este seu olhar”. Era a música deles, dizia Andréa. Maurício tentou cantarolar um pouco mas suas lágrimas o interrompiam. Lembrou então daquele primeiro trabalho de história sobre a República Velha que os uniu muitos anos atrás. Eles tinham o guardado. Maurício tirou a velha pasta amarela do fundo do armário e, a algum custo, conseguiu achar o trabalho no meio de tantas recordações. Estava escrito a caneta vermelha, pela professora Bruna:

“9,5 – Muito bem, mas ainda faltou um pouquinho mais de aprofundamento. Talvez vocês tenham perdido esse 0,5 ponto nos beijos mais demorados.”

E logo abaixo, ainda por Bruna:

“PS. Brincadeira! Parabéns pelo namoro e felicidades!”

Maurício então, 68 anos depois, com dor no coração, questionou-se se havia valido a pena.