Tempo Perdido
Ano passado gravei uma entrevista com um rapaz portador de HIV. Não foi a primeira, nem será a última entrevista com um soro-positivo que farei, mas nessa minhas impressões foram fortes. Não lembro bem seu nome, mas irei chamá-lo, não por acaso, de André.
André tem uns trinta e poucos anos e é portador do vírus há uns treze. É bonito e aparentemente saudável. Ele acredita que tenha sido contaminado ao compartilhar seringas de heroína com amigos e com a namorada durante um show do Rock in Rio II. Não perguntei se algo especial o motivou a fazer o exame ou se ele descobriu por acaso. Mas perguntei o que havia acontecido com aquela namorada. "Morreu poucos anos depois", respondeu, acrescentando que houve vezes em que teve que enterrar amigos em três semanas seguidas.
Depois da contaminação André ficou quatro anos sem ter coragem de se relacionar sexualmente com alguém. Na verdade, nem coragem para beijar ele tinha. Antes de tudo, a barreira a ser vencida era o preconceito contra si mesmo: precisava aceitar sua realidade.
Quando voltou a se relacionar, André escolhia mulheres que também eram portadoras do vírus. Mas logo desistiu da idéia simplesmente porque não aguentou perder seguidas namoradas pelo mesmo motivo, a morte. Ao se decidir por não mais sair com moças soro-positivo, ele caiu, então, em outro problema. Deveria contar ou não sobre a doença? Atualmente ele não conta, a não ser que o relacionamento seja mais duradouro. Seu motivo, apesar de questionável, é bem compreensível por uma história que ele viveu.
André foi parar, um dia, em um motel com uma garota que ele acabara de conhecer. Com as "coisas" já bem encaminhadas, ambos sem roupa, ele achou melhor contar. "Tenho Aids", disse. A garota levantou da cama assustadíssima e, nua, saiu correndo escada abaixo. "Ela parecia fugir de um bandido, como se a Aids estivesse a perseguindo", recorda André. Essa história aconteceu no meio da década de 90 do século passado. Segundo ele, esse tipo de coisa pode acontecer tranquilamente nos dias de hoje.
O primeiro pensamento que André teve ao pegar o exame foi o suicídio. Essa idéia só lhe deixou três anos mais tarde, com muita, muita análise. Seu maior problema não era carregar o fardo de ser portador de HIV, mas viver sempre pensando que a qualquer momento ele poderia morrer. É estranho porque não é preciso ser soro-positivo para se ter certeza de que a qualquer momento se pode morrer e, nem por isso, as pessoas ficam pensando em suicídio. Talvez a diferença seja que a vida de André dependa de um combinado de remédios e mesmo com eles essa vida ainda é incerta. Para viver, a ele não basta somente respirar e comer.
Sobre o coquetel de remédios, no início do ano um médico lhe disse para não tomar tantos. Depois de treze anos de remédios seu fígado ficou seriamente afetado e agora ele tem que fazer um tratamento específico. Segundo André, hoje as pessoas com Aids não têm morrido de pneumonia como há alguns anos, mas de problemas no fígado ou nos rins. Parece cômico ? mas não é - ficar tomando por anos um remédio para salvar sua vida e esse mesmo remédio lhe matar.
Uma vez, há muito tempo, logo quando soube que era portador do vírus, um outro médico lhe disse que ele não viveria seis meses mais. Desde então André não consegue se programar para fazer nada que vá terminar ou começar seis meses depois. O tempo, para ele, ficou curto. Seu sonho é cursar uma faculdade, mas o medo de não terminar não permite que ele comece uma. "Quando faço um curso, escolho aqueles de curta duração. Um ou dois meses no máximo", lamenta. Em treze anos ele poderia ter se formado em pelo menos três cursos universitários.
André conseguiu aprender a conviver com o vírus, com a constante idéia da morte, e até com o preconceito. O que ele ainda não aprendeu foi conviver com o tempo.