O amor de cada um (I)
Com 23 anos de vida ele ainda se sentia desamparado. Seus pais, há muito, já haviam o deixado. Vivia sozinho em um apartamento escuro, bem no centro daquela cidade. E, na maioria das vezes, estava sozinho.
Depois de poucos meses de pura solidão, ele, não aguentando mais, começou a conversar com panelas, pratos, chuveiro e até janelas. Animava os objetos a sua volta para dar ânimo a si mesmo. O mundo externo, dito real, fora de seu apartamento, passou a pouco lhe importar. Acreditava que tanto sua vida em sociedade quanto seu trabalho eram ainda mais enfadonhos. Trabalhava na assessoria de imprensa da secretaria de meio ambiente da cidade do Rio de Janeiro. A assessora-chefe era uma velha amiga de sua mãe e o empregara de favor. Ela, imaginava ele, odiava seu trabalho e não via a hora de sua mãe morrer para poder manda-lo embora sem maiores culpas. Ele não se importava.
Chamava sua caneca de estimação, um presente de sua falecida tia-avó, de Jéssica. Tirava Jéssica do armário várias vezes por dia, mas nunca a usava como objetivo principal de uma caneca. Ela tinha que respirar, pensava. Pedia licença, dava bom dia, masturbava-se em cima de Jéssica, limpava com sabão, dizia até breve e a colocava de volta. Tinha tara por Jéssica e se martirizava por isso. Sua última namorada o deixara exatamente 25 meses atrás. Desde então não conseguiu sair com outras mulheres e causava-lhe arrepios a simples hipótese de pagar por sexo.
Certa vez procurou a psicóloga de seu trabalho para contar sobre Jéssica. Ele sabia se tratar de uma perversão.
Contou tudo para Dra. Marisa, terapeuta freudiana, 36 anos, bela bunda, seios pontudos e lábios carnudos. Marisa era a moça mais cobiçada em seus tempos de colégio. Com 13 anos, numa freada repentina que fora obrigada a dar com medo de colidir com um caminhão em movimento, Marisa caiu levemente para frente do banco da bicicleta naquela haste metálica rígida. Nesse exato dia ela havia combinado com a prima que ambas sairiam de saia e sem calcinha. Acordo feito e cumprido, Marisa sangrou entre as pernas e, menina criada no interior segundo preceitos cristãos, achou que tinha sido deflorada. Ledo engano, viria a descobrir aos 15 anos, numa aula de biologia. Foram os 2 anos de trauma que a fizeram estudar psicologia.
Marisa ficou sabendo de todos sentimentos dele por Jéssica. A doutora o aconselhou a tratar melhor seu amor, não a deixar sozinha em casa por tanto tempo e dar presentes. Uma das reclamações mais recorrentes era sobre a pouca demonstração de carinho de Jéssica por ele. No final da consulta, ele ainda pensou em contar que Jéssica era uma caneca branca com uma daquelas carinhas amarelas sorridentes, smiley, na lateral. Mas ele achou que Marisa demonstrara-se uma péssima conselheira, falara pouco e não teria nada a acrescentar. Foi embora dali e nunca mais viu Marisa. Largou o trabalho e se fez esquecer pelo mundo ao lado de Jéssica.