Eis que chego no escritório e lá está a estagiária, dezessete aninhos, terceiro ano do curso de Geografia, ou Ciências da Computação, talvez Estatística. Sei que é estagiária da firma desde uma semana atrás e se chama Linda, que destino. Linda me dá bom-dia com um sorriso próprio, não insinua nada nunca, mas eu percebo, cada gota de minha transpiração exala a censura dela ao reparar nas mangas mal dobradas. É o gosto do fracasso que estampo no sorriso que responde ao cumprimento, o rabo dos olhos acompanhando Linda rebolar corredor adentro, salto alto, a calcinha demarcada nas ancas, a saia abaixo do joelho, a blusa com asinhas de borboleta nas costas.
Fico atualizando dados durante quase dez horas por dia, números que demostram a quantidade de pregos usados no décimo-andar do edifício da firma e semelhanças, ainda que completamente diversas. Linda batuta sobre papéis e planilhas através da minha porta, feito gente grande, óculos e o namorado no celular de três a cinco vezes no dia. O namorado decerto sabe ajeitar as mangas da camisa, se não for o Fábio Assunção em pessoa. Claro, ele pode ser um jogador de futebol ou um halterofilista e nem ter mangas na vida para se preocupar, que inveja. O idiota não deve fazer idéia de como Linda não deveria existir nessa Terra, ou faz e a trata mal de propósito, homens.
Mas hoje excepcionalmente o sangue ferveu diante do escárnio de Capitu que linda dirigiu a mim pelas minhas mangas. A fedelha. Deve ter uma prontificada mamãe a lhe acordar já com o desjejum matinal posto na mesa, se bobear com um recadinho a dizer que o namoradão ligou ontem de noite, mas já era tarde e disse que você estava dormindo, meu bem, ele disse que liga hoje. A prevaricadora. Ignora o drama de acordar sozinho e a primeira coisa a lembrar é a fatura do cartão de crédito que você não lembra onde pôs, nem se usou para anotar o celular da morena no bar que lhe causa a ressaca em sua manhã. Você toma um café forte e mergulha dentro da roupa de trabalho, para passar o dia maldizendo a própria inabilidade com mangas de camisas.
Vi o rebolar proposital com ar de indiferença seguir pelo corredor. Tolerei o cabelo preso num coque com fios beijando a vértebra saliente no pescoço. Fechei os olhos para as omoplatas em flor. Mas o desdém em seus olhos de menina moça, isso não me desceu pela goela. Cerrei os punhos e nem eram ainda dez horas da manhã. Mataria a ela como Raid mata tudo bem morto, ou ao menos teria coragem o suficiente pra mandar tudo às favas e cobrir aquela boca com meus dentes ensangüentados; ela me denunciaria à polícia, às redes de televisão, ao meus chefe, a minha mãe, se possível fosse. Me xingaria de maluco e perlingueiro, ainda que perlingueiro não seja ofensa nem conste nos dicionários. Ela nunca mais teria olhos para tal escárnio.
Foi o instante em que ela se virou, linda, diáfana, no corredor, e a pulseirinha no tornozelo, o batom carmim, a pinta na mão esquerda. Gostei dessa camisa, ela disse. E seguiu, provavelmente rumo aos portais do Paraíso enquanto eu, caído, queixo caído, respiração caída, caía em prantos sobre as mangas da camisa.