segunda-feira, janeiro 31, 2005

O grande drama da minha idade adulta é o fato de que não consigo dobrar decentemente as mangas de minhas camisas de manga comprida. Vocês devem saber, aquelas camisas sociais que os atores da novela usam com as mangas dobradas na altura do antebraço e fazem a Carolina Dieckman ou a Helena Ranaldi caírem de quatro ou de boca ou simplesmente caírem escada abaixo. Eu não sei, as mangas sempre ficam desiguais, as dobras cismam em não casar. Saio de casa murmurrando palavrões à meia-boca antes de desejar um bom dia aos vizinhos eventuais no elevador.

Eis que chego no escritório e lá está a estagiária, dezessete aninhos, terceiro ano do curso de Geografia, ou Ciências da Computação, talvez Estatística. Sei que é estagiária da firma desde uma semana atrás e se chama Linda, que destino. Linda me dá bom-dia com um sorriso próprio, não insinua nada nunca, mas eu percebo, cada gota de minha transpiração exala a censura dela ao reparar nas mangas mal dobradas. É o gosto do fracasso que estampo no sorriso que responde ao cumprimento, o rabo dos olhos acompanhando Linda rebolar corredor adentro, salto alto, a calcinha demarcada nas ancas, a saia abaixo do joelho, a blusa com asinhas de borboleta nas costas.

Fico atualizando dados durante quase dez horas por dia, números que demostram a quantidade de pregos usados no décimo-andar do edifício da firma e semelhanças, ainda que completamente diversas. Linda batuta sobre papéis e planilhas através da minha porta, feito gente grande, óculos e o namorado no celular de três a cinco vezes no dia. O namorado decerto sabe ajeitar as mangas da camisa, se não for o Fábio Assunção em pessoa. Claro, ele pode ser um jogador de futebol ou um halterofilista e nem ter mangas na vida para se preocupar, que inveja. O idiota não deve fazer idéia de como Linda não deveria existir nessa Terra, ou faz e a trata mal de propósito, homens.

Mas hoje excepcionalmente o sangue ferveu diante do escárnio de Capitu que linda dirigiu a mim pelas minhas mangas. A fedelha. Deve ter uma prontificada mamãe a lhe acordar já com o desjejum matinal posto na mesa, se bobear com um recadinho a dizer que o namoradão ligou ontem de noite, mas já era tarde e disse que você estava dormindo, meu bem, ele disse que liga hoje. A prevaricadora. Ignora o drama de acordar sozinho e a primeira coisa a lembrar é a fatura do cartão de crédito que você não lembra onde pôs, nem se usou para anotar o celular da morena no bar que lhe causa a ressaca em sua manhã. Você toma um café forte e mergulha dentro da roupa de trabalho, para passar o dia maldizendo a própria inabilidade com mangas de camisas.

Vi o rebolar proposital com ar de indiferença seguir pelo corredor. Tolerei o cabelo preso num coque com fios beijando a vértebra saliente no pescoço. Fechei os olhos para as omoplatas em flor. Mas o desdém em seus olhos de menina moça, isso não me desceu pela goela. Cerrei os punhos e nem eram ainda dez horas da manhã. Mataria a ela como Raid mata tudo bem morto, ou ao menos teria coragem o suficiente pra mandar tudo às favas e cobrir aquela boca com meus dentes ensangüentados; ela me denunciaria à polícia, às redes de televisão, ao meus chefe, a minha mãe, se possível fosse. Me xingaria de maluco e perlingueiro, ainda que perlingueiro não seja ofensa nem conste nos dicionários. Ela nunca mais teria olhos para tal escárnio.

Foi o instante em que ela se virou, linda, diáfana, no corredor, e a pulseirinha no tornozelo, o batom carmim, a pinta na mão esquerda. Gostei dessa camisa, ela disse. E seguiu, provavelmente rumo aos portais do Paraíso enquanto eu, caído, queixo caído, respiração caída, caía em prantos sobre as mangas da camisa.