segunda-feira, outubro 24, 2005

VI

Nada é tão cínico e canalha quanto um homem apaixonado.

Rigorosamente nada. Hitler justificando o extermínio dos gentios e McCarthy torturando criancinhas negras passíveis do comunismo carrasco da pax americana perdem. Perdem feio. Eles negam seus vícios, mas a culpa lhes toma o lugar da sombra. As fotos em periódicos e as falas em ondas de rádio e televisão denunciam que mentem, ou ao menos deliram. Homens apaixonados são capazes de pão com ovo no café da manhã acompanhado de guaraná antártica sem gás com vodka diluída. Hitler não bebia. Eu tomava porres há pelo menos uma década e nem tinha chegado aos trinta ainda.

E estava apaixonado por Luana. Luana eu não sei, ela era bem malandra para seus bem vividos vinte anos. Vinte e um, para ser exato. Me beijava na hora do gozo, me fazia cafuné enquanto eu suspirava para morrer ao seu lado e me cobrava a mensalidade da ginástica que eu havia prometido. No final do dia ela invadiria minha existência outra vez, ligaria a televisão na novela, atacaria minha despensa de homem solteiro - comida industrial semi-pronta, sucos em caixa, maionese, pão, frutas e verduras de validade questionável - e me cobriria de beijos e amor e paz.

E eu me apaixonaria por cada nuance, cada vírgula, cada erro de sintaxe. Os peitos de auréola quase rosa, o bumbum suculento e bronzeado, os pelinhos com blondor no cóccix. Era a minha sina com ela, morrer de amor. Clichê barato de literatura do século XVIII para vocês, para mim o respiro de cada manhã e o desassossego de cada noite. Então, eu mentia compulsivamente chegando a enojar a mim mesmo quando me ouvia, queria me esganar, me mergulhar no fundo do Guamá com cimento nos pés, arrancar fora a minha língua, etc. Eu era um nojo, Luana merecia coisa melhor.

Ela, sentada quase deitada a conversar comigo, que lia um livro, de noite, televisão ligada no programa da Luciana Gimenez, ou do João Kléber, ou do João Gordo. Beliscava minha barriga e sorria, criança. Eu sorria, maroto. Ela perguntou, menina-mulher, o que eu faria se ela estivesse grávida, olhos nos olhos, aqueles momentos em que uma mulher não pode te ver peidar na farofa, aquele timing que pode tornar você - aos olhos dela, mané - homem feito ou menino descartável. Olhei sério, fechando o livro, claro que eu iria assumir, minha linda. Como não? (Tudo mentira, eu no mínimo, daria um jeito de fugir para o estrangeiro.) Ela não dá o braço a torcer, "Você não iria querer que eu tirasse?" Era óbvio que sim, eu não era de Belém, não pretendia morrer ali, nem ao menos tinha nascido ali, não queria um filho ali, nem mesmo com ela porque não queria filhos com ninguém tão cedo em lugar algum, vade retro, sai, passa! Lu, eu respondi de bate-pronto, eu jamais vou te pedir algo assim, eu nem tenho idéia do quanto deve ser ruim tirar um filho. Ela acariciava a própria barriga, eu pensava no estoque de camisinhas que tinha guardado no criado-mudo.

Aí ela confessou que já havia abortado, ela era muito nova, o namorado então não deveria ser muito paternal a seus olhos. Descobriu porque tinha desejos de tomar sorvete de três a cinco vezes ao dia. A tabela um belo dia falhou. O sorvete voltou regurgitado, a menstruação atrasada, os quatro testes de farmácia azularam. Estava grávida e não queria estar. O médico que fez a ultra-sonografia fez o preço. Era algo muito desumano para alguém em vias de ser mãe, o catéter, o barulho, acabou. Ela disse que não faria outra vez, ainda acariaciava sua barriguinha que eu dedicava horas e horas a beijos e cafunés e mordidas e ais e uis. Ela se levantou e foi até a bolsa, pegou um envelope pequeno, voltou para mim. Seu quase filho de 3 meses, um pequeno botão, ela chorava e meu coração cínico apertava. Verdades dóem.

Canalha, meu bem, canalha.