A mão dela, sempre flor, estalou no meu rosto. Ficou a marca e o eco nos meus ouvidos, nem reparei na hora se as pessoas saindo do supermercado ficaram olhando o barraco cair. Ela me olhou com toda a fúria do mundo e por instantes temi por minha vida, ou ao menos por minhas bolas.
Cafajeste, ela falou de dentes cerrados, cachorro. Não achei sábio avisar que ela poderia estragar as uvas se continuasse apertando o cacho dentro da sacola de compras com uma das mãos furiosas de seu corpo. Aquilo me deixava nu, me calava qualquer palavra e eu não tinha para onde fugir. Fugir como? Fugir para quê? Precisava ficar e apanhar como homem.
Não dei um pio, não me movi. Apanhei calado. Eu sabia que havia errado, eu sabia que nenhum erro passa incólume. Ela estava segurando a fúria havia uns dias, eu já tinha me dado conta. Pequenos detalhes na mesa do jantar, ironias acima do tom na saída do cinema, três chopes a mais diante dum jantar com amigos. Uma mulher pode te torturar aos pouquinhos só pra ver se você se entrega, entrega os pontos, pede perdão, compra flores, faxina a casa, compra uma casa em Trancoso.
Aquele bofetão, eu sabia, era um aviso. Não era o ponto final, mas já era uma definitiva exclamação. Porque Nidia não era de tapas, era mulher de argumentar e trucidar o sujeito à meia-voz. Ela me fazia cometer os sete pecados capitais simultaneamente à meia-voz. Ela me convenceu a passear no shopping com a irmã à meia-voz. Na única vez que sugeri, matreiro, uma bofetada, ela saiu da meia-voz pra perguntar se eu estava doido.
No entanto, ali, diante das compras e desconhecidos, ela gritou comigo fisicamente. Sua pele era um leopardo eriçado diante da presa.
Fez-se o silêncio e uma rotina sinistra. Guardou-se as compras, entramos no carro, fomos para casa. Em alguns quilômetros, senti sua mão em minha coxa direita, como que a alertar que ainda éramos um casal, eu apenas precisava ter cuidado. Ela chegou mesmo a ligar o rádio. Podia vê-la olhar a paisagem, os lábios cantarolando contra o vento. A mão já esboçava carinhos.
Com as compras, veio o elevador, um par de vizinhos, a porta e trinco. E veio ela contra mim. A fúria em seus lábios. "Acho bom você me convencer a não te escorraçar daqui pra fora", ela me mordeu a orelha num sussurro de naja. Suas mão viraram facas, os dentes espinhos. As compras no chão e aquela mão outra vez no meu rosto. Aquela mulher sabia como fazer um homem virar macho.