segunda-feira, novembro 20, 2006

Rascunho

Quando levantei da cama, não havia mais nada. Nada a declarar, nada a se fazer, nada que eu pudesse recolher ou furtar. Quis fechar os olhos para ver se as coisas voltavam ao normal numa outra vez que os abrisse, e fechei mesmo, mas continuava a ausência em minhas pupilas quando tornei a abrir a vista e então saí que poderia me atrasar.

O dia ventava, mas o sol estava lá, impaciente. Cheio de luz para deixar claro meu vazio pelas ruas, os passageiros nos coletivos vendo através de mim, as crianças de rua jogando bolas de papel através do meu ocaso, namorados atravessando de mãos dadas minha ausência. Eu caminhava inerte porque assim tinha de ser e eu de fato o era, havia o mundo e eu dentro dele e outras pessoas para as quais eu simplesmente não existia.

Eu atravessava as ruas e olhava as saias das moças, mesmo atrasado. Nenhuma delas me sorria e algumas gostariam de me ameaçar pelo desacato, decerto poucas ameaçariam fingidas para que eu reparasse noutros bordados de sua prenda e lhes segurasse o pulso e lhes roçasse a fúria em lábios e palpitações, mas estou certo de que eram poucas. Eu não era esse homem de despertar tanta fúria nas mulheres, eis aí uma grande frustração pra qualquer homem que se preze.

Cruzei a última esquina e logo o porteiro me cumprimentou, o mesmo sorriso, o mesmo bigode falho numa das pontas, os mesmo dentes necessitados de flúor e cálcio. Não havia me atrasado e ainda possuía dez andares a escalar. Dentro do prédio, o ar-condicionado me isolaria da luz e do calor e eu seria ainda mais inexistente, uma peça dentro de um organograma.

O primeiro dia sem ela não seria nada fácil. Ela levara quem eu gostava de ser junto das coisas na mala. Só me restou aproveitar um rascunho que achei perdido entre os lençóis.