segunda-feira, abril 10, 2006

Conto antes de dormir

Falta de sono, um teclado e um disco do Velvet na vitrola em conjunção geram a vontade de escrever um conto. Femme Fatale na voz da Nico bate no coração, enquanto Heroin na voz do Lou Reed entra na veia. Os versos parecem dialogar e eu fico voltando de uma canção para a outra, ouvindo "I don't know where I'm going" e "Here she comes, you better watch your step", e achando que tudo se trata do mesmo assunto.

Tomo uma dose de whisky e penso em acender um cigarro, mas me lembro que parei de fumar. Quero trepar, mas não tem ninguém por perto e não tenho paciência para sair de casa e pagar uma prostituta. Essa rotina de drogas e sexo cansa, principalmente quando é realizada com as mesmas drogas e com um sexo boçal, pago com dinheiro e favores.

Quero falar com meu filho, mas está tarde para telefonar. Não quero aumentar o ódio de sua mãe por mim, mesmo sabendo que seria divertido provocar algum ciúme no imbecil do seu novo marido. Ele é um troglodita quase inofensivo de tão mobral, e arquiteto por formação. De tão estúpido, duvido que ele saiba explicar o significado de um ângulo de 90 graus - nenhuma formulação é mais interessante do que a do ângulo oriundo de duas retas que se encontram num único ponto e que se afastam com a maior velocidade possível. É daqueles caras que ficam horas se masturbando com imagens de meninas de olhos grandes, pele clara e seios pequenos, baixadas dos piores mangás que se encontram na internet.

Ela o conheceu meses depois de me deixar e levar nosso filho embora. Digo para todos que choro à noite por não ter querido brigar pela guarda na Justiça, o que não é verdade. Sou péssimo pai e não pretendo ser um bom pai. Estou velho para mudanças.

Quando adolescente, considerava-me marxista e não pensava em filhos, prostitutas ou heroína. Eu dizia lutar pela superação da classe operária sobre a burguesia exploradora, através da formação de um estado socialista. Na verdade, nunca fiz nada além de ir numa ou noutra passeada de partidos de esquerda, mas vou contar para meu filho, depois que ele entender a importância da luta política, que eu fui um revolucionário. Quando ele crescer, vai sacar que tudo isso não passa de balela para justificar uns serem mais fudidos do que os outros. Só que tenho certeza que ele vai repassar minha história para meu neto, perpetuando minha imagem heróica por pelo menos duas gerações.

Escrever sobre gerações, falta de sono e todo o resto que já relatei me fazem pensar na morte, além de querer escrever um conto. Poderia falar dela neste conto, falar de como se joga xadrez com a dona todos os dias, num jogo lento e finito, sem possibilidade de empate. Ex-mulher, filho e o mobral do punheteiro de mangás são todos peões. Nunca movimentei uma das peças da primeira linha. E, também, para falar a verdade, nunca me considerei jogando xadrez com a morte para escrever sobre isso, apesar de já ter assistido ao filme do Bergman.