segunda-feira, dezembro 19, 2005

O admirador anônimo

Eu entrei na livraria atrás dela, movido por um certo sentimento doentio que mexia comigo. Até então não sabia se obsessão ou amor. Fiquei observando de longe, atento a um momento em que eu pudesse me aproximar e iniciar uma conversa daquelas sem pé nem cabeça, mas que ao menos permitiria algum contato, mesmo que mínimo. Em situações desesperadas, mínimos contatos são motivos suficientes para boas noites de sono e dias de esperança.

Para ela, eu era um anônimo entre tantos anônimos. Porém, me sentia ainda mais anônimo pensando que, para os outros, ela também era uma anônima. É que, para mim, ela era motivo de obsessão ou amor há oito meses ou mais e a não retribuição de tais sentimentos fazia meu anonimato ainda mais doloroso.

Fiquei na porta num primeiro momento, ao lado da mesa dos lançamentos. Seus passos traçaram a letra "c", escrita imaginariamente no sentido horário. Pensei que ela fecharia o círculo formando um "o", mas antes de chegar lá, parou, escolheu um livro na terceira prateleira de baixo para cima da estante lateral e se sentou num banco de madeira comprido, colada a uma mesa também de madeira. Apoiou o livro lá e começou a ler. Só então, larguei meu posto de vigília e caminhei pela livraria. Não agüentava mais as pessoas atrás de lançamentos, fazendo perguntas idiotas. Oxalá um dia abram uma livraria em que os lançamentos fiquem escondidos no fundo e não na entrada. Seria mais inteligente: os 95% consumidores das grandes livrarias seriam obrigados a passar por todas as prateleiras, inclusive a de clássicos da cultura grega, para chegar aos lançamentos. É que 95% dos consumidores das grandes livrarias só querem saber dos grandes lançamentos. Eu e os outros 5% agradeceríamos pela novidade.

Não consegui identificar seu livro num primeiro instante, mas depois percebi que era uma coletânea de reportagens históricas. Pensei em escolher o mesmo livro e tirar dessa falsa coincidência alguma elocução que me tornasse menos anônimo. Desisti por medo da obviedade. Não poderia subestimá-la.

Preferi um romance, talvez para demonstrar alguma cultura. Peguei Sexus, do Miller. Eu tinha o livro, comprado de um velho livreiro que o oferecera semanas antes, e estava na página 182 antes de entrar na livraria, próximo à ocasião em que Henry foi pego por sua mulher com a amante na cama. A mulher já sabia que Henry a traía - ele havia contado - mas ter presenciado a cena foi duro demais e ela finalmente o largou, como o próprio Henry gostaria.

Mais novo, costumava entrar em livrarias, pegar livros que já havia começado a ler e continuar a leitura ali mesmo, sentado num canto. Prosseguia uma obra já começada, mas em outro exemplar. Era como se eu estivesse deflorando um livro, ao mesmo tempo em que cometia adultério contra meu livro. Abria suas páginas suavemente, como quem abre as pernas duras e tímidas de uma virgem. Era gostoso romper levemente linhas ou cola que mantêm os livros enfeixadas em capas duras, diferentemente do exemplar arrombado e bastante manuseado que tinha em casa. Os com mais páginas eram os mais satisfatórios porque, depois de abertos bem no centro, sobrepostos numa mesa, nunca mais voltariam a sua forma original.

O prazer era ainda mais acentuado pelo aroma de novo, do papel que nunca encontrou oxigênio ou pele. O papel liso cujo único contato na vida até o momento da cópula na livraria era apenas com mais papel. Com os quase contraditórios vergonha e regozijo, confesso que diversas vezes me peguei fisicamente excitado ao inaugurar um livro.

Com Sexus na mão, sentei bem ao lado dela, no mesmo banco de madeira. Mas fiquei de costas para a mesa, enquanto que suas pernas, que eu tanto desejava, estavam encaixadas entre banco e mesa. Éramos como dois atletas apoiando umas costas nas outras para esticar pernas e alongar músculos. Mas fazíamos isso sem que nossas costas se tocassem. E como eu queria que ela pousasse seu corpo em minhas costas.

Rompi o exemplar de Sexus, mas não me excitei com facilidade. Ficamos dez minutos sentados, lendo. Cheguei à página 196, numa leitura rápida, mas sem muita atenção. Dez minutos lendo e pensando como criar alguma contato verbal com ela, sem que parecesse pernóstico, chato, presunçoso ou deselegante. Na verdade, o que eu mais queria era confessar meu desejo de amá-la, espiritual e fisicamente, naquela livraria, no banco ou na mesa. Sexus tinha mais de 500 páginas e poderia servir como apoio para a cabeça, caso fosse necessário. Nós dois nus sobre a mesa com um livro grosso servindo de apoio para sua cabeça. Esta era a cena que me desconcentrava para pensar em algum diálogo. Livro rompido, cheiro inalado e suas costas quase encostadas nas minhas, foi inevitável o desconforto de uma ereção intensa, daquelas que causa certa dor pela impossibilidade do alívio.

Neste meio tempo, uma moça gorda de calça jeans e um rapaz negro de blusa amarela pararam próximos a nós e conversaram alguma coisa estúpida sobre pessoas procurando livros de Eça de Queiroz nas estantes de literatura nacional. Ficou claro que o assunto a incomodou quando ela virou um pouco rosto e observou o estranho casal com olhos de indignação. Tinha pavio curto, pensei, e eu deveria tomar ainda mais cuidado.

Quando ela se levantou, chegamos a trocar olhares e eu sorri simpático, como o faria para qualquer desconhecido. Ela retribuiu como faria para qualquer um dos anônimos naquela livraria. Sei disso porque ela sorriu para outro que esbarrou em suas costas na porta de entrada. Era um dos 95% clientes típicos de livraria em busca de lançamentos. Um dos 95% teve mais sorte do que eu e conseguiu um sorriso e um encontro de costas. A mim, restou apenas o sorriso antes de ela ir embora.