quarta-feira, dezembro 28, 2005

IX

Eu gostava de caminhar pelo Rio adormecido. Ainda gosto, é o único lugar onde me sinto em casa, onde tenho algumas certezas. Certezas idiotas e provavelmente não-concretizáveis, apesar de serem minhas verdades absolutas. Caminhar pela cidade após a maioria de sua população economicamente ativa ter se deitado sempre foi dos meus passatempos favoritos desde que o hábito de beber até mais tarde se apegou a mim, praticamente virando um cartão-postal do homem que tentava ser.

Caminhar por Belém era diferente. Não que fosse ruim, porque era bom, mas era diferente. As luzes brilhavam diferentes, o espaço nas ruas entre os carros eram diferentes, as pessoas nos bares ou nas janelas ou nas calçadas eram diferentes. O ar que eu respirava era outro. Eu era outro. A própria noite era outra, não era o Rio, não era São Paulo sem estrelas em seu céu, não era Belo Horizonte. E aquela era uma noite surpreendentemente fresca naquela cidade tão calorenta, tinha saído do cinema e não havia mais ônibus até minha rua naquela hora. Porém havia o Bar do Parque, que não fechava nunca.

Os garçons circulavam madrugantes, era dia de semana, poucos e heróicos fregueses naquela hora no lugar. Tratava-se de um quiosque estilo colonial onde um balconista tomava conta dos pedidos, dava algumas ordens aos garçons e providenciava cigarros, chicletes e afins. A cozinha ficava num subsolo da praça onde o bar se instalara, as mesas ficavam numa área elevada em relação à Praça da República, ao lado do Teatro da Paz. Abaixo dos fregueses, a cozinha, onde pedi ao Teixeira, meu garçom, um sanduíche de calabresa com mortadela e cebolinhas fritas. Um primor. Acendi o último de meus Luckies e deixei a Cerpa descer devagar.

O grande porém de eu morar em Belém era a minha preguiça em conhecer muita gente. Aquela coisa de você não criar muitas raízes numa cidade onde só se está a caminho de outra, porque, mais dia, menos dia, acabaria indo embora. Então, de vez em quando batia a carência absurda de ter uma amigo ou um desconhecido qualquer para falar sobre qualquer coisa, dividir uma ceveja, marcar um futebol. Só que já passava das onze da noite e eu não estava com paciência para mulher alguma. O jeito foi abrir um livro e esperar o sanduíche. Ler de noite sem paredes é uma experiência renovadora, altamente recomendável. Então, veio a surpresa. Teixeira assossegou-se perto de minha mesa e falou de lado, enquanto anotava qualquer coisa num bloco que "Fante bom é o de 1933". Para John Fante, grande escritor norte-americano, criador do imortal Arturo Gabriel Bandini, 1933 foi um ano ruim e digno de ser transformado em romance. Romance soberbo e lido por Teixeira, quem poderia imaginar. Eu estava no meio de "O Caminho de L.A." e concordei com o homem.

Eu lia Fante com um misto de admiração e inveja, porque tenho plena consciência de que minhas palavras nunca alcançarão aquele nível de rancor ou dedicação a uma mulher. Teixeira concordava, Fante amava e odiava além daquelas páginas, o homem era real, seus livros nos diziam algo sobre a incongruência de estarmos vivos e não aproveitarmos os dias. "Você veja, rapaz, a cidade está vazia e são apenas onze da noite. Cadê a vida das pessoas aqui?" Teixeira poderia apenas reclamar que o bar estava com movimento fraco, mas fez algo mais e eu concordei. A vida não acontece em silêncio, Belém merecia uns gritos. E ele foi trazer meu sanduíche. Voltei ao Fante, Bandini perseguia uma mulher por ruas e portos.

Já era tarde quando cheguei em casa e desabei na cama. Sozinho, meu bem, sozinho.