domingo, setembro 25, 2005

IV

A chuva era implacável. Vinha do nada para nos punir ou apenas nos lavar ou quem sabe como tempero e solvente naquele grande guisado de asfalto e carros de som e vendedores ambulantes e selvagens de óculos escuros. Após a chuva, o calor seria ainda menos tolerante. O calor expande os corpos e a dilatação irá nos unir, pelo olhar, pelo cheiro, pelas gotas de suor, pela cachaça barata, pelo tempo que corre e a tudo irá fazer sucumbir, sem perguntar se alguém irá chorar ou esquecer suas memórias.

Não existe Belém sem a chuva. Após seis meses onde as nuvens descarregam seus excessos todos os dias, você já ultrapassou a curiosidade, a dúvida, o susto, a revolta e a resignação. Torna-se paisagem ou apenas outro obstáculo que você precisa aprender a enganar. Olhar para o céu antes de ir ali na esquina comprar cigarros, jogar na loteca ou negociar pó pode significar a diferença entre a vida e a morte. As ruas, e particularmente a minha, alagam, os ratos aparecem feito em barcos que naufragam, os bueiros vomitam nossa cagada de tratar uma cidade tão porcamente a nossos pés. Não se desafia o céu em Belém, a não ser que você caminhe sobre as águas, coisa que só um cabeludo e um kriptoniano foram publicamente ditos capazes de fazer até hoje. O cabeludo e o kriptoniano se estreparam de modo lendário, um pregado numa cruz e açoitado até tombar, outro desapareceu no limbo duma caverna secreta dum rapaz que usava cueca vermelha por cima de uma calça jogging azul com botas vermelhas e cinto dourado.

Eu estava debaixo duma marquise e dentro daquele pequeno caos que se transformara o outro lado da calçada da esquina de casa. Impossível atravessar a rua sem correr o risco de ser eletrocutado ou testar se sua pele era à prova de doenças lindas como leptospirose e vá lá saber o que havia naquela água corrente pelas calçadas e ruas. Pensava que talvez não havia fechado a janela do apartamento, e isso seria o pior dos pesadelos. Crianças passavam correndo, crianças gostam de chuva, crianças são capazes de gostar até de lama e merda se a elas for oferecido com um sorriso. Nós, adultos, apenas deixamos de ser crianças a maior parte do tempo para nos tornarmos idiotas que bebem demais para sorrir de menos. Crianças brincam e tropeçam e levantam correndo naturalmente. Nós precisamos de solventes químicos.

Eu também precisava de Luana. E de um guarda-chuva eficiente ou quem sabe um bote salva-vidas. Luana era capaz de me sorrir e dizer que sempre chovia quando fazíamos o tal do amor, e nem amor era ainda, era apenas uma boa trepada entre duas pessoas que se gostavam muito. Ela via a chuva cair e sorria, sempre chove quando estou aqui, e rolávamos pela cama feito gatos ou novelos de lã. Ela mordia e arranhava. Em Belém chove 340 dias por ano, mas Luana não precisava saber ou não se importava, ela me amava e aquela chuva era o nosso amor lavando a sujeira do mundo, refrescando a alma da rua, cobrindo aquela cidade de beijos. Era agosto. Luana adorava, porque iria chover sempre que nos encontrássemos. Encolhi o corpo e me pus a caminhar o quarteirão até o meu edifício. Logo fiquei encharcado pelo meio da rua, carros e ônibus me empoçando sem perdão, a pequena vingança dos motores contra aqueles que contrariam a revolução industrial e andam sobre seus pés. Podem me molhar o quanto quiserem, nenhum de vocês e seus possantes conhece Luana nos dias de chuva. E chove 340 dias por ano nesta cidade. Eu sorria e me molhava.

Agosto, meu bem, agosto.