terça-feira, setembro 13, 2005

III

Ela ligou e disse que estava a caminho. E perguntou se eu tinha algo para beber, havia sido um dia terrível, apesar de sábado, apesar de verão, apesar de sol. Eu tinha rum, Deus me perdoe, mas eu tinha uma garrafa de rum fechadinha, quase nova, zero bala. Eu pude ver o sorriso dela do outro lado da linha. Dois pecadores numa cidade quente e suja. Luana disse que chegaria em pouco tempo, só deixaria a sobrinha em casa ou algo assim. Fui me arrumar para aguardar minha chiquita e nos divertirmos, Luana sempre me divertia, mesmo sentada sobre minhas costas espremendo minhas espinhas e cravos ou apenas lendo o futuro na minha tatuagem.

Tomei um banho expresso, deixei a água escorrer pelos meus cabelos quase grandes e quase bons, o que os classifica como curtos e ruins. Mas eram meus e por algum motivo que jamais irei entender, eu gostava deles daquele jeito, de passar a mão por sobre a nuca e sentir os alvéolos deles em meus dedos. Nada de bom vem de graça neste mundo, nem estes prazeres diminutos. Era por esta época que começavam a perguntar quando eu iria cortar aquele cabelo, primeiro com discrição, insinuações, gracinhas. Depois vinha a cobrança, o cabelo era horrível, você está que parece um marginal, está precisando de dinheiro pra ir num barbeiro?, quando você vai cortar essa palhaçada?, etc. Luana já estava saindo da fase um, já não gostava tanto de mim com o cabelo rebelde solto e livre.

Ela chegou com um brilho nos olhos. Oh, yeah, baby. Let's fall in love all over again. Luana, tão menina, era a provável mulher da minha vida, não havia nada de Belém que pudesse ser tão bom quanto a sua presença ou o seu abraço ou a sua respiração. Preparei as bebidas, ela soltava risinhos cúmplices de menina arteira, me beliscava, brincava com o controle da tevê. Lamentei não ter maconha, o momento pedia um beck, a fumaça, o doce da larica na garganta e o desejo em cada após. Lamentei não ter conhecido Belém antes, ter estado longe das ruas e noites e mãos que me levariam até aquela inevitável Luana, que derramava o rum em minha boca cuspindo da sua e sorria e me beijava o sexo.

Ela parou e me olhou nos olhos, no meio daquilo tudo, nós dois sem direção e nos agarrando náufragos. Disse que me amava e que morreria se eu não a amasse, os meus olhos assustados e míopes a testemunhar aquela confissão inesperada. Era demais para um pobre diabo que passava dias a digitar num teclado frases e mais frases que nem sempre eram lógicas, mas apenas frases que deveriam ser ditas a quem as desejasse ler. O jornalismo não era a profissão mais glamurosa da nossa época, estávamos a anos-luz dos enólogos, dos fotógrafos da Playboy e de alguns pilotos de corridas. Disse e me beijou chorando, decerto a bebida influenciou na cena, mas diziam que in vino veritas e os advogados e legisladores tão bajuladores de latinismos deveriam considerar o consumo de álcool como algo revelador da personalidade do sujeito, não algo que falseia a hipocrisia social da sobriedade. Abracei Luana como jamais poderia abraçar qualquer outra luana neste mundo e fiquei calado a sentir aquele amor que ela jurava passando como recibo a própria vida. Eu que gostava de ser hiperbólico achava demais moça tão formosa se matar por mim, mais bêbado que escritor, mais burocrata que jornalista, mais surdo que músico.

Demais, meu bem, demais.