O Lobo da Estepe
A cerveja descia morna e alguém ligou. Olhou o relógio, três da manhã. Más notícias nunca podem esperar boas horas. Resmungou e nem era velho o bastante para tal. Atendeu. Alooou? Voz de mulher, forte sotaque, suspeitas de consumo alcoólico. O Lobo sorriu, sorriu porque adivinhou A Garota do outro lado da linha. Ela não era qualquer garota, era A Garota, ela lhe ligava para dizer que gostaria de ficar doida com ele e lhe morder o pau e as bolas e arrancar um pedaço de seus mamilos. Louca, mas ele gostava.
O Lobo da Estepe tinha dessas coisas na vida, mulheres loucas. Elas descobriam como chegar até a ele e vociferar suas loucuras, quando não o atacavam e destroçavam aos poucos aquele resto de fé na humanidade que ele insistia em conservar. Elas eram monstros, mas sabiam disfarçar isso todo o tempo, de forma que ele se via sempre tentado a ceder às tentações. Ademais, ele gostava, sorria, correspondia e até incentivava.
Ela, por sua vez, gostava também. Era dessas gurias que se acham semibêbadas e seminuas pelas ruas de Porto Alegre a alegremente procurar o acaso. "Me comas", dizia em sussuro inaudível. E repetia até o amanhecer. Putana sem rumo, piázinha ainda, deixava crescer os pelos pubianos numa classe sem classe e sem compostura e se julgava muito senhora disso tudo. Era virgem, mas não contaria essa verdade incriminatória jamais ao Lobo, temia o clique fatal na linha e o eterno silêncio daquelas noites.
Ela gostava da respiração e das perguntas do Lobo, que ela imaginava um senhor de 67 anos, escaras nas costas, lembranças apagadas, marcas de tiros e faca pelo peito. O Lobo apenas escrevia crônicas em jornais que ela consumia como se elas, as crônicas, algum valor tivesse além do preço de tinta e papel gastos nelas. A Garota morreria por aquelas palavras, pelo homem daquelas palavras, pelas histórias e mentiras daquele homem. Queria dizer a ele que amava e não queria mais desamar e que sonhava todos os dias em encontrá-lo ao pé de sua cama, velho, senil, as mãos cansadas de espancar teclados e macacos.
O Lobo já havia pensado em desistir de tudo tempos atrás, quando escrever era fácil e até gostoso. Aproveitava essas garotas lhe querendo sempre que dava e depois deixava o quarto antes do sol, silencioso, usado. Aí as palavras resolveram complicar as coisas, ele passou a estranhá-las e estranhar aquelas cartas, as ligações, as rimas pobres. Então A Garota o achou, numa tarde de quinta, num inverno, num bilhete manuscrito passado por baixo da porta de seu quarto e sala. Havia um número de telefone e mais sete letras enfileiradas a serem lidas "me comas". Isso já tinha um ano.
O Lobo da Estepe não tinha 67 anos, mas 42. Tinha escaras nas costas, mas nenhuma bala no corpo. Havia tatuado um amor falido no antebraço esquerdo e perdido um dente por conta do Sport Club Internacional de Porto Alegre. Havia publicado alguma literatura também, de onde apareceram as loucas e seu emprego nos jornais. Diante dA Garota e seus sussuros, tudo aquilo virava pó e desejo. Ela descrevia com requintes de crueldade como havia sodomizado motoristas de ônibus, coleguinhas de sala de aula, moscas de bar e pedófilos arrependidos fantasiando com seu glorioso pau, sua metafórica língua. Ela ofegava e chorava, um desespero. Mas nunca, jamais, lhe dizia quem era, onde estava. Desligava quando as palavras faltavam e pronto, não atendia mais ao telefone. Aquilo era um jogo e ela queria vencer.
O Lobo, derrotado, em lágrimas aliviava o desejo daquela fala sozinho e sujava o chão da sala e voltava ao teclado. As palavras, ou as palavras Dela, o guiavam sem rodeios rumo a algo que pudesse fazê-lo ter em suas mãos A Garota. A cada dia se mostrava uma luta mais perdida, mas ele esquivava, salteava e chamava seus monstros pro pau. De nada adianta apanhar da vida sem poder revidar os sopapos.
As próximas horas seriam muito boas para ela também.