quarta-feira, agosto 24, 2005

O amor de cada um (xvi)

Eu resolvi me matar com 20 e tantos anos para tentar provar que eu poderia mostrar tanto amor quanto ela achava que seu ex-marido havia mostrado. Não criei cenário, nem acendi velas. Simplesmente fechei portas, tampei frestas, abri o gás e escrevi uma carta de amor enquanto agonizava. Não durou muito e não tenho certeza se consegui me expressar bem.

Mais jovem de quatro irmãos, aprendi a conviver com as comparações cedo. Silvio era o preferido da mãe; Arthur, do pai; e Flávio, das mulheres. Pai e mãe ainda tentavam esconder suas escolhas e afinidades, mas era impossível. O pai, quando aborrecido comigo por pichar os muros dos vizinhos, dizia que eu deveria ter o comportamento de Arthur. A mãe não suportava minhas manhas e lembrava da seriedade de Silvio.

Em relação às mulheres, minha sorte só foi melhor do que a de Arthur, que tinha o nariz grande e uma mancha no lado esquerdo do rosto. Eu estava acostumado com sua aparência, mas passado o tempo, admito que aquele irmão era horrendo.

Michele, a garota mais bonita da escola, a quem eu convidei para tomar um sorvete num sábado à tarde, respondeu impiedosa "você é tão fofinho, mas deveria pedir uns conselhos para o seu irmão Flávio". Anos mais tarde, descobri que Flávio havia sido o responsável pela iniciação sexual de Michele.

Cresci, então, assim, buscando o comportamento de Arthur, a seriedade de Silvio e o charme de Flávio.

As comparações de infância não se tornaram exatamente um trauma na vida adulta, mas construíram um sujeito competitivo com uma necessidade ímpar de auto-afirmação. Foi assim na escola e no trabalho.

E foi assim também com as mulheres e suas dúzias de histórias de ex-namorados, viagens, casos e noites intermináveis de cópulas. Eu precisava me inserir em suas lembranças, quaisquer que fossem, qualquer que fosse a maneira.

O suicídio do ex-marido de minha última namorada, então, provocou o pior dos sentimentos e me agonizou por meses em busca de um ato que superaria aquela fictícia prova de amor. Porque ela me lembrava sempre como aquele suicídio havia sido a maior prova de amor que alguém já havia lhe dado, e jamais lhe daria novamente. "E ele fez isso por mim", repetia, soltando uma ou duas lágrimas.

O suicídio é um ato covarde na sua essência, é a forma mais simples de fugir dos problemas. No caso do ex-marido, esta havia sido a explicação. Ele não agüentava a perda e preferiu se matar a insistir numa reconquista ou numa recuperação. Aborrecia-me, portanto, toda a ladainha de que seu suicídio havia sido movido por amor. Não foi.

E a única forma de provar a ela seu erro era mostrando a única forma de suicídio movida por amor. Confesso que antes de tudo, antes dos meses sofrendo em busca de um ato que pudesse superar aquele suicídio, não concebia, tampouco acreditava, que existia alguma forma de suicídio que não fosse movida apenas por covardia. Minha morte provavelmente foi o único suicídio em toda a história da humanidade motivado por um amor de qualquer natureza, não apenas pelo amor de um homem a uma mulher. Os minutos inalando o gás foram suficientes para me convencer.

Na carta, escrevi apenas "para provar que eu te amo mais do que qualquer um poderia amar". Espero que tenham sidos suficientes, essas palavras, para convencê-la.