Morcego Negro - Nada
Pouco mais de três meses de trabalho e adaptação a uma nova cidade tiraram da minha garganta a sede de Nina. Alguns momentos uma lembrança aparecia mais forte e eu, não o tempo, congelava. Sorvia a memória sem pressa, como se fosse um legítimo cálice sagrado e exigisse silêncio, respeito. Eram pequenas aquelas lembranças sobreviventes. A cor dos sapatos preferidos. Um dia gasto numa procura por uma meia-arrastão rosa choque. O gosto do batom que ficava no copo. A primeira vez que ela adormeceu no meu colo segurando minha mão.
Eu anotava num caderno aquelas lembranças que não se foram misturadas à raiva ou a barbitúricos. Eu não sentia mais raiva ou pena, acontece que eu também não sentia mais nada. Sem Nina, não havia porque perder tempo com sentimentos - seria hipocrisia, o que eu sabia sentir era dela que vinha. Eu não estava mais amargo, agora eu era um homem neutro feito água. Bia chorou ao ver em meus olhos que eu não ligaria no dia seguinte. Maria me esbofeteou o rosto quando eu preferi terminar a pizza e só depois dirigí-la até o ponto do ônibus. Leila não sabia que eu só fumava perto dela porque eu sabia que ela detestava a fumaça.
A agência não parava de me oferecer um outro cargo melhor na sede, porque minhas contas e clientes geravam lucros de sonho. Diziam que eu poderia escolher entre Rio e São Paulo, que triplicariam meu salário, que pagariam minhas despesas com aluguel. Eu aceitei. Era um publicitário e vivia de conquistas. Fabricava ambições.
O detalhe é que eu não acreditava mais em ambição alguma, não havia mais nada a ser cobiçado. Só havia o tempo, eu agora precisava do tempo, não sabia extamente para quê. Tirei uns dias de folga para ajeitar a mudança de volta, não havia de ser nada.