O paradoxo do prisioneiro de bar
"O céu por cima do porto tinha a cor de uma TV ligada num canal fora do ar". Era uma das frases mais babacas que eu já havia lido e, no início de um livro, ficava pior ainda. Mas não era por isso que eu não conseguia seguir adiante. Desde o dia em que ela me disse que gostava de freqüentar o Belmonte do Flamengo, simplesmente perdi toda a motivação para ler em bares. Só sentava, pedia chopes, abria o livro, divagava e esperava em vão.
Resumo a história que precede minha agonia de bar apenas com as palavras paixão e covardia, para não os amolar tanto. Porque, vocês sabem, histórias de paixão e covardia são sempre muito chatas e monótonas. Dois meses atrás, num papo de corredor, uma colega de trabalho por quem eu estava apaixonado disse que volta e meia aparecia no Belmonte. A partir daí, usei todos os meus tempos vagos como freqüentador daquele bar. Esperando.
Eu me chamo Júlio, mas isso pouco importa. Aprendi o nome de todos os garçons, cozinheiros e gerentes do Belmonte. Depois do primeiro mês, começaram a me dar pastéis de cortesia e a me chamar de Julinho. Meu ritual era simples: sentava numa das mesas de dois lugares no estreito corredor ao lado do balcão - sempre de frente para a porta-, pedia chopes e tirava o livro da bolsa. Menos por amizade, mais por educação, cumprimentava os garçons, um por um. Nunca lhes contei meu motivo e acredito que pensavam simplesmente que eu era um bêbado desocupado. Sentava lá em qualquer horário, de noite ou de dia, e às vezes chegava a beber 20 chopes antes de desistir. Garanto que conheço o cardápio tanto quanto o cozinheiro.
A primeira frase do livro que me acompanhou nestes dois meses é do "Neuromancer", de William Gibson. Sim, um livro de nerd que, dizem, é muito interessante. Mas aquela frase estúpida e a preocupação em não deixar de fitar todas as pessoas que cruzavam a calçada me impediam de continuar. Quando chegava no canal fora do ar, lembrava-me dela, de Clarke, Dick, Videodrome, Orwell, Matrix e outras besteiras. Uma de minhas divagações mais recorrentes dizia respeito à incerteza sobre a existência de uma música de Frank Zappa chamada Father O´Blivion. Outra, era tentar achar uma interpretação semiótica aos filmes do Pasolini - neste caso, confesso que tive dificuldade, muito por ter visto Teorema, Evangelho..., Medéia, Decameron há mais de cinco anos, muito por minha incapacidade intelectual.
Como devem ter reparado, ela nunca apareceu e escrevo pela necessidade de contar ao mundo minha desistência. De dois meses para cá, não tive outros curtos instantes com a moça a só no corredor do trabalho para tentar descobrir o motivo que poderia ter a feito mudar de bar.
Sei que pode parecer loucura esperar alguém que não se sabe se, quando e, principalmente, com quem vai chegar. Mas paixão e sanidade também nunca me pareceram combinar. No décimo-primeiro dia, um amigo que não via há muito tempo apareceu no Belmonte de surpresa. Contei-lhe meu motivo e ele me incentivou. Disse que sofria do mesmo mal, uma paixão platônica por uma colega de trabalho. Em seu caso, a paixão também se tornou fixação, mas ao invés de tentar encontra-la fora do horário de serviço, martirizava-se imaginando praticar sexo oral na moça. "Sabe, Julio, eu te entendo. No trabalho, não consigo para de me imaginar lambendo a buceta da Fernanda".
Eu adorava cunnilingus e os décimo-segundo e décimo-terceiro dias foram praticamente todos dedicados à mesma imaginação de meu amigo. Acabava o fora do ar, e já nos imaginava na cama, no chão, no elevador e, mais insano, no corredor do trabalho, o mesmo em que aconteceu a revelação sobre o Belmonte.
É claro que estou frustrado. Questiono se todo esse tempo perdido buscando um sonho valeu a pena. Minha paixão perdeu intensidade, lógico. Tornou-se, porém, obstinação e não é simples lidar com essa nova realidade. Mais cedo, hoje, fui num puteiro para tentar esquecer. A prostituta, mesmo solícita, não conseguiu exercer um carinho suficiente para que eu relaxasse. Mas apesar de péssima boqueteira, foi ótima conselheira.
Lembrou-me, ela, da história que um cliente a havia contado. Era o paradoxo do prisioneiro de Wittgenstein, mas acho que ela não sabia disso. Enfim: "Um rei decretou uma lei em que todo estrangeiro que chegava ao reino teria que declarar, sob ameaça de enforcamento, o verdadeiro motivo de sua viagem. Mal sabia o monarca que se colocaria num dilema insolúvel quando um esperto viajante sofista explicou ter ido ao reino para ser justiçado com base na tal lei".
A prostituta foi peremptória para minha desistência ao perguntar se minha paixão faria sentido caso ela aparecesse no Belmonte com o único intuito de se encontrar comigo. "E então, Julio? E, então, você realmente quer se encontrar com ela, ou só precisa alimentar um fetiche tolo?". Achei estúpido, sorri, paguei pelo péssimo boquete, mas não voltarei ao Belmonte. Retornarei, sim, àquele puteiro, tenho certeza.