E se eu estiver morto?
Eu não tenho a menor idéia de quantas pessoas vêm aqui, no Inventando Dogmas, regularmente e, muito menos, de quantas dessas pessoas me conhecem pessoalmente. Como eu já escrevi uma vez, tudo o que ponho nesse espaço é ficção, nada mais. Estou bem longe desse garotão malandro e quase nunca "take a walk on the wild side". Quem apenas lê esse blog não me conhece, tenho certeza.
Mas, como em tudo, há alguns poréns. Uma amiga psicóloga, outro dia, tentou me convencer que, mesmo quando inventamos personagens, transparecemos muito de nossa personalidade. O mais apropriado, talvez, seja dizer que transparecemos quem gostaríamos que fossemos - o que não reduz o valor para o conhecimento. O papo surgiu depois de eu afirmar que, caso fizesse análise, criaria um personagem e me divertiria mentindo para o analista. Minha amiga me disse que não faria diferença e ela provavelmente está certa.
O mais grave de me conhecerem apenas pela internet é que muitos leitores desse personagem que crio podem nunca saber que morri. Porque é possível que neste momento eu esteja morto. Um dia isso teria que acontecer e quem passar por esse blog e ler esse texto nunca vai ter real conhecimento de meu destino.
Ajudo, então. A causa de minha morte foi overdose. Misturei pó com muito whisky barato e deu nisso. Não me arrependo, apesar de odiar fazer escolhas estúpidas, como morrer pelo uso de drogas. Abominava, em vida, qualquer droga sob a explicação de que nada que altere a razão pode fazer bem para um ser-humano. O que nos diferencia dos animais são nosso raciocínio e nossa alma. E as drogas nos fazem perder metade dessa humanidade.
Meu raciocínio, tão auto-valorizado, me pregou então uma peça, por ironia. Vejam bem: por me vangloriar tanto de pensar, me permitia fazer escolhas incomuns, mesmo as mais estúpidas, mesmo aquelas de que poderia me arrepender depois. Não tive tempo para arrependimentos nesta última vez, porque a escolha foi bastante equivocada. Em resumo, morri por pensar e querer desafiar o pensamento. "É errado, mas acredito que sou esperto o suficiente para me controlar e fazer valer a alienação momentânea". Talvez eu, ou esse personagem, não fosse tão esperto assim.
Muitos de vocês, porém, não têm idéia a quem consolar com minha morte. Conheceram-me apenas por aqui, ou por chat, ou por e-mail. Não têm idéia onde morava e do que gostava. Conheceram apenas o personagem e não se importam mesmo se estou realmente morto. Culpa da frieza das palavras escritas via internet.
Os que nunca me viram ou ouviram talvez estejam lamentando. Outros que me conheciam há pouco tempo talvez me dediquem duas lágrimas. Amanhã, vocês já estarão de volta à cerveja, sem pestanejar. Esse personagem não fazia diferença mesmo para ninguém que não fosse eu, um escritor em busca de um desfecho para seu livro. Tudo o que fazia era exercício e, antes de morrer, queria mesmo dar continuidade à história de Julio Sarmento, de uma maneira digna.
No próximo post, se não estiver morto, volto a escrever ficção. Vou falar de um cara amante de cunilingus que começou a freqüentar lugares na esperança de se encontrar com uma paixão. Ele, meio louco, imaginava que a pessoa poderia aparecer em determinado bar naquele dia e ficava lá, bebendo cerveja, esperançoso. Quem não me conhece, nem vai perceber a diferença entre a ficção e a realidade. Nem vai se importar, até.
Assim como quem me conhecia já não se importa mais.