quinta-feira, setembro 30, 2004

Repugnância, medo e castigo (parte iii e final)

O inferno, para o cristianismo, pode ser explicado basicamente de duas formas: um local realmente quente, onde o condenado ficará acorrentado e será açoitado por toda a eternidade; ou um local onde a dor e a lamentação surgiriam da ausência de Deus. Há ainda uns poucos que acreditam que o inferno é uma metáfora para a aniquilação total, uma "outra morte". Os bons - entre os quais não creio estar incluído - se salvariam e todos os outros simplesmente deixariam de existir. Essas possibilidades são verdadeiramente cruéis.

Às vezes fico pensando que eu simplesmente posso deixar de existir. É agonizante, esse pensamento. Ainda mais para mim, um narcisista que se acha bom demais e importante - se não para o mundo, ao menos para si próprio. Aí mais um motivo para que eu siga ladeira abaixo.

No São Bento havia um professor de religião que dizia que quem colasse nas provas iria para o inferno. Se vocês colarem, irão para o inferno. E a gente imaginava o fogo, as chicotadas e a gargalhada do tinhoso. Era horripilante. Uma vez eu fui dar uma de engraçadinho e escrevi numa prova que eram 11 os mandamentos, não 10. Acrescentei um não colarás, para brincar com o professor. Eu tinha essa mania de mandar recados para os professores nas provas. Cheguei até a mandar ironias mal-criadas para a professora de cultura clássica que me detestava. Minha resposta atendeu a suas expectativas, professora?

Nos dois casos, das provas de religião e de cultura clássica, tive problemas sérios de relacionamento com os professores após esses exemplos de estupidez juvenil. O de religião foi ainda mais incisivo em suas broncas. Como você ousa desrespeitar os mandamentos de Deus, seu verme? E lá ia eu, arrependido, com medo de um dia ter que encarar Satã, lá ia eu rapidamente me confessar. Filho, conte-me quais foram seus pecados.

E eu respirava fundo para ganhar coragem. O mais difícil da confissão era revelar tanta culpa para senhores vestindo hábitos pretos. Arrepender-me, isso era moleza. Eu tinha uma tática: começava dizendo que havia desonrado meu pai e minha mãe. Desonrei meu pai e minha mãe, Dom. Para infelicidade de meus pais que não mereciam tanta desonra, eu o considerava, o quarto mandamento, um pecado mais leve.

Dali em diante as coisas ficavam um pouco mais fáceis. Ausentei-me de uma ou outra missa no domingo, levantei falso testemunho, cobicei os bens alheios, faltei ao respeito com o professor de religião. Os monges ouviam, alterando movimentos com a cabeça e prossigas sussurrados. Eu deixava o mais difícil para o fim, esse, sim, um dos pecados mais graves para um adolescente católico.

Respirava fundo. Os confessores, nessas horas, sabendo qual pecado faltava, me incentivavam cruelmente. Vamos, meu filho, prossiga para que eu possa lhe dar a absolvição de Deus. Sacanas, pareciam ter prazer naquilo. Eu pequei contra o sexto mandamento, Dom. Sozinho ou acompanhado, André?

Aquilo era sádico demais, sabe? Nas duas tábuas, nas duas malditas tábuas recebidas por Moisés não havia tantos detalhes no sexto mandamento. Estava escrito divina e simplesmente não pecarás contra a castidade. Não havia essas opções, sozinho ou acompanhado. Sozinho, Dom, só pequei contra a castidade sozinho.

Dá para entender que até na confissão eu cometia mais um pecado. Porque eu queria ter pecado contra a castidade acompanhado. Só que meu pecado era sempre sozinho, uma confissão atrás da outra. Os monges davam a absolvição. Eu te perdôo, em nome do pai, do filho e do espírito-santo. Porém, em seus pensamentos havia apenas a palavra virgem. Amém. E enquanto eu era absolvido, meu arrependimento real era não ter pecado contra a castidade acompanhado.

Desde jovem, portanto, comecei a trilhar meu caminho para o inferno. Não há mais jeito, tenho apenas que me conformar. Porque no julgamento estarão todos lá: a bruxa que me jurou, a Baixinha, o médico cuja mãe rondou minha imaginação, o professor de religião, a professora de cultura clássica e, principalmente, Deus. Para Ele, não vou conseguir mentir.

André e a punição eterna, dupla que logo, logo, vai se formar. E sem whiskies, charutos, cunilingus, Salvador, filmes do Fellini e outros prazeres da vida. A gente se vê lá.