terça-feira, setembro 28, 2004

Repugnância, medo e castigo (parte ii)

O vai para o inferno, portanto, foi assustador. Porque sei que eu mereço isso mesmo, mereço ir para o inferno. Recebi aquilo como um castigo, uma maldição. Para alguém que aprendeu a acreditar em inferno, demônios, chifres, fogo, chamas eternas e congêneres, uma bruxa daquelas jurando meu destino naquele calor, aquilo era barra pesada, sabe? Saí dali assustado e fui direto para o Carlitos, para desjejuar com três chopes garotos, dois pastéis de camarão e catupiry e uma halls azul. Precisava relaxar.

Uma semana antes, a Baixinha, guardadora de carros da Rua de Santana, me contou um sonho. Eu tive um sonho com você, na verdade não foi nem um sonho, na verdade foi um pesadelo mesmo, eu tive um pesadelo com você. Era de manhã, umas 10h. E não era exatamente o que eu estava querendo ouvir àquela altura do dia.

Ih, Baixinha, me conta logo esse sonho que estou curioso. Ela externou um tanto de aflição, pareceu-me que não queria contar. Ai, eu sonhei que você estava pegando o carro, abrindo a porta, quando dois caras apareceram por trás para te roubar. Eu logo vi que essa história não iria acabar bem. Aí você se virou e eles pensaram que você iria reagir, que você iria atirar. Mas, Baixinha, eu sou um cara pacífico. Eu sei, eu sei, mas eles pensaram e deram dois tiros à queima-roupa. E então, Baixinha, conta logo. Você caiu sangrando, eu ainda te segurei para tentar ajudar. E eu morri?

Não é muito bacana começar um dia ouvindo uma história, mesmo um sonho, de que você tomou dois tiros. Eu não achei muito bacana. Não sei se você morreu, acordei assustada, meu irmão me perguntou o que havia acontecido e eu contei que você levou dois tiros. Ele levou dois tiros. Quem? Um rapaz que pára o carro comigo, um rapaz cujo nome eu nem sei, só lembro da placa, LHA 3259. Isso realmente partiu meu coração, essa coisa de ela dizer que só lembrava da placa.

Meu nome é André, Baixinha, e pode ficar tranqüila, que ainda tenho alguns anos pela frente. Não se preocupe, André, que esse tipo de sonho traz saúde, não desgraça.

Fiquei preocupado, sim. Despedi-me da Baixinha e nem perguntei seu nome. Ao invés de acabar de vez com aquela distância tola de guardadora e carro que nos separa, simplesmente ignorei. Se eu perguntasse seu nome, ela ficaria feliz, satisfeita, veria que eu me importo. Mas eu apenas me despedi. Tchau, Baixinha, não se preocupe. Insensível e falso.

Então, quando a bruxa do Centro do Rio, uma semana depois, me mandou para o inferno, na mesma hora lembrei-me do pesadelo da Baixinha. Lembrei-me que eu poderia ir para o inferno por não ter perguntado seu nome, por não ter me importado com o afeto que ela havia demonstrado por mim.

Toda essa história, esse pesadelo, essa jura da bruxa, tudo isso está me deixando preocupado. Tenho dirigido com cuidado demais, olhando demais para os lados, ficando nervoso com qualquer clown dos sinais de trânsito que se aproxima para pedir dinheiro. Tio, viu como eu sou um bom malabarista? Ah, sai daqui moleque!

E só vou aumentando, assim, a certeza de atravessar, um dia, o Cócito. E aumenta a certeza de que esse dia está próximo. O que devo fazer? Pagar R$ 60 ou R$ 70 por semana para ouvir um merda de psicanalista dizendo que eu estou paranóico? Olha, doutor, eu estou preocupado em morrer com dois tiros. E, sabe, doutor, estou preocupado em ir para o inferno. Não seria convincente, muito menos útil.

E eu nem gosto de médicos. Faz mais de um ano, com o braço machucado, que aparecei num médico. Ele engessou. Ainda bem que foi o braço esquerdo, né, André? E deu aquilo sorriso maroto, sacana, o filho da puta do médico. Pensei em falar que, mesmo com os dois braços quebrados, a mãe dele, do médico, iria me masturbar com prazer. Felizmente me contive, mas aquilo, aquele pensamento impuro me aproximou mais do inferno, tenho certeza.

(continua...)