segunda-feira, setembro 27, 2004

Repugnância, medo e castigo (parte i)

Ei, gostosão. Não olhei, pelo menos não diretamente. Vi que havia pelo menos duas mulheres, até porque uma, sozinha, não teria coragem e propósito para aquilo. Ei, gostosão. Elas faziam parte de um grupo grande de bancários grevistas. Estavam ao lado do Edifício Central, com faixas da CUT e similares. Eram muitos.

Digeri mal o elogio. Eram grevistas, deveriam estar ali por um propósito sócio-econômico, não para fazerem gracinhas. Segui direto e não sorri, mas guardei bem o local de onde partiu o "ei, gostosão". Havia um poste bem próximo, o quarto à esquerda da entrada do banco para quem vinha da Cinelândia.

Passei minha manhã de segunda-feira caminhando pelo Centro do Rio, rodando sebos, atrás de gibis antigos - uma velha paixão que estou, aos poucos, retomando. Caminhar no Centro é quase tão divertido quanto ir à praia em Copacabana. A fauna é diversa, sabe? O calor estava de rachar e, tentem entender, isso pode ter afetado meu humor negativamente.

Deixei os sebos de lado, entrei no banco e saquei uns reais num caixa eletrônico. Foi uma estupidez. Remoí o falso elogio por longos e peremptórios instantes e fiz uma péssima escolha. Fiquei com raiva daquela falsa grevista mais preocupada em cantar pessoas na rua do que em protestar pelos seus direitos de trabalhadora. Imaginei as dúzias de gracejos estúpidos que ela já teria dito naquela manhã. E nem eram 11h ainda. Eu fui um tolo e achei que entrando no banco, palácio do capitalismo, iria me vingar dela e de todos os outros grevistas. Se eu procurasse, acharia um ou outro jogando truco com a bandeira vermelha servindo de tapete para que seus traseiros não ficassem sujos. Fui injusto, admito.

Passei novamente perto do quarto poste à esquerda da entrada do banco para quem vem da Cinelândia. Tirei umas notas de dez e de vinte da carteira e andei lentamente, contando bem alto, ao lado do poste. Eu contava cantarolando, tipo aquele programa do Silvio Santos, sabe? Dez reais, prim, prim, vinte reais, prim, prim, trinta reais, prim, prim. Porra, às vezes eu me esqueço que o uso constante da razão foi o mais importante ensinamento de toda a minha vida.

Vai para o inferno. Era o mesmo tom de voz, preguiçoso, metido a malandro e com chiclete vagabundo na boca. Ei, gostosão, vai para o inferno. As frases até se encaixavam. Se isso tivesse acontecido há seis, sete anos, eu provavelmente teria tascado um beijo na boca daquela bruxa que acabara de me rogar uma praga bem ali, ao lado do Largo da Carioca. Só para deixa-la sem graça, sem reação, sem vergonha. Seria um beijo só de farra mesmo, um beijo que aplacaria minha raiva como um tapa. Mas eu não sou mais o mesmo.

Outro dia, num dos meus períodos de solteiro, fui numa boate. Olhei, andei, bebi uns whiskies, mas simplesmente não consegui libertar minha volúpia. Até achei que uma ou outra moça poderia ter se interessado por minha barba densa e mal feita, mas não dava mais, sabe? Não enxerguei mais graça naquilo. A música nem estava tão boa e só valeu mesmo pelo whisky. André e um copo de whisky, a parceria perfeita, o único amigo que me atura em todas as minhas crises.

Há uns sete anos, eu era diferente. Uma vez fui com uns amigos para a praia de Copacabana num dia de semana. Para ver a fauna. Apostei que beijaria a boca da primeira menina razoável que aparecesse ali mesmo, nas areias da praia. Eu era um escroto. Eles toparam, duvidaram. Não eram tão amigos, para falar a verdade. Se fossem, achariam aquilo ridículo demais e nem dariam atenção.

Encontrei uma menina de Três Rios, bonitinha até. Papo vai, papo vem, eu falo de um primo que mora em Três Rios, mas confesso que não me lembro de sua rua, seu bairro, sua escola... Invento um nome, descrevo um perfil e a moça, pobrezinha, diz conhecer. Eu acho que eu conheço seu primo, sim, ele não tem um amigo chamado Renato? Meu Deus, só você sabe como eu tive que me segurar para não rir. Ganhei a aposta, lógico. Voltei para casa, naquele dia, vitorioso e babaca. Mas, naquela época, só percebia a primeira característica.

(continua...)