segunda-feira, agosto 23, 2004

A vista já estava cansada e suas mãos lhe doíam, mas Roberto não parava de bater no teclado. Escrevia compulsivamente sem prestar muita atenção se por vezes atropelava regras e cânones gramaticais, e afinal para tanto existiam revisores e leitores atentos neste mundo. Um riso quase diabólico emoldurava o rosto do homem, finalmente havia achado um caminho possível para trilhar seu romance, agora era questão de escrever e escrever, juntar palavras a idéias, compor personagens, ditar o ritmo.

Escrever um romance era um sonho que carregava consigo desde menino. Lembrava do pai por trás da barba espessa constantemente a abrir e fechar livros vários, tomando anotações, como se ele próprio fosse de algum modo responsável pelo que estava grafado nas páginas. Não entendia direito tanta dedicação às palavras o menino, mas gostava de ver o pai concentrado em sua quietude a procurar por respostas que apenas serviam para expandir o universo das perguntas. Mas não foi a imagem do pai que o tornou escritor, mesmo porque o pai apenas lia e se escrevia algo, escrevia apenas para si ou para alguém que não era Roberto.

Roberto tinha doze ou treze anos quando Renata deu seus passos tímidos dentro da sala de aula de seu novo colégio. Algo aconteceu em Roberto além de um relativo aumento da sua produção de testosterona, e afinal a imagem de Renata adentrando em seu universo nunca de todo saiu da cabeça de Roberto, inclusive é esta a imagem que ele apresenta no início de seu romance: Renata deu seus passos tímidos dentro da sala de aula de seu novo colégio, apertando contra si uma pasta vermelha e a atenção curiosa da turma que agora também era sua. Ao fundo da sala, o aluno Roberto sentiu seu próprio corpo o trair com um sorriso de menino que lhe tomou as faces, e quase não percebeu que Renata instintivamente sorriu de volta enquanto a aluna nova contrariava o pai, e buscava um lugar ao fundo da sala, perto de Roberto, que arrumara um bom motivo para sorrir diariamente.

Uma semana mais ou menos foi o tempo que Renata bagunçou bastante a puberdade de Roberto a ponto deste lhe compor uns versos, claro que versos de meninos que jamais haviam escrito versos antes e que não se julgavam capazes de escrever outros depois. Que Renata adorou aqueles versos de menino não há a menor dúvida e neste segundo sorriso grato dela uma idéia tomou conta de Roberto, a idéia de escrever para a sua musa, para o coração, os olhos e o sorriso dela. Assim começou Roberto a escrever, no intuito de beijar aquela Renata de passos tão tímidos, construindo metáforas para fantasiar as palavras conforme permitiam suas aulas de literatura.

Renata após um par de anos trocou novamente de colégio, lhe deixando além de beijos na lembrança e lágrimas que o fizeram chorar feito o meninão de quinze anos que era, o gosto pelas palavras. Conforme o tempo e as renatas foram passando, o gosto de Roberto foi virando necessidade, compulsão, escape e por fim vício, seu estado atual. Roberto escreve porque é um viciado em palavras, precisou mesmo aprender mais duas línguas para satisfazer a gana de conhecer palavras diferentes. Como qualquer viciado, perde horas de sono e a hora do ônibus, sem contar sessões de cinema, para escrever uma linha, um verbo, um ponto e vírgula que completariam o parágrafo; já tentou largar o vício lendo apenas livros de auto-ajuda, livros com fotos de bichinhos, livros escritos por publicitários; perdeu uma namorada que não aceitou que ele ficasse mais de três dias sem trepar com ela porque não conseguia emendar um soneto.

Palavras acabaram por levá-lo a adentrar em várias portas que nem imaginava existir, inclusive nas de um bar chamado Armazém São José certa noite na fria Curitiba onde se encontrava com amigos de faculdade participando de um encontro nacional de estudantes de comunicação social. Entre garçons, pedidos de aipim frito, garrafas de Bohemia e piadas sem a menor graça, adentrou no local em passos tímidos e segurando apenas uma bolsa vermelha uma original e impossível Renata que Roberto pensou ser fruto da onda do beck prensado e fumado horas antes. Mas eis que Renata instintivamente reconheceu o olhar que tão bem a enxergava e caminhou na direção dele, como só ela poderia fazer e só ele poderia descrever. "Me escreva", ela pediu ao deixar com ele seu endereço de e-mail, enquanto conversavam sobre tanto tempo que não se viam, e o pedido era uma ordem, Roberto precisava escrever Renata de algum modo, e três anos mais tarde, conseguiu começar o romance.

Roberto martelava o teclado, ignorando as horas que o separavam do prazo final dado por seu editor. Estava ciente, contudo, que chegaria ao ponto final em questão de poucas páginas. O título soava a seus ouvidos como música de último capítulo de novela das oito, "Renata, meu primeiro romance". Ele escrevia então para ela, e escrevia como jamais poderia amar outra palavra que não Renata, com érre maiúsculo e tudo o mais.