quinta-feira, maio 13, 2004

Havia pouco que tinham voltado do cinema e então namoravam sob a luz da televisão no quarto, adornados na cama de casal. Um reflexo da lua se insinuava pela janela nem muito novo, tampouco cheio, apenas minguava entre poucas estrelas e algum neon. Ele, sonolento, manuseava um encarte de CD com a mão esquerda e se perguntava quem diabos era responsável pelo corte de cabelo do Rod Stewart enquanto o braço direito era de sua garota, num abraço seguro que lhe acariciava as costas. Ela falava sobre o filme, gostava de falar, especialmente com ele.

Bocejou enquanto respondia a uma frase dela. No meio do bocejo se deu conta de que já tinha visto e não tinha gostado do enlatado que figurava na televisão e perguntou se ela gostava daquela porcaria, exatamente nestes termos, você gosta de ver esta porcaria? Não é porcaria, ela se virou para a tevê, e eu gosto. E ainda arrematou, porcaria é aquele conjunto que você estava escutando no seu apartamento semana passada. Já estava pronto para treplicar que o Rancid jamais seria porcaria ao contrário daquele enlatado, com citações de Baudrillard e Dylan, mas preferiu ir ao banheiro.

Quando voltou, ela já tinha desligado a tevê, tirado o vestido e entrava na camisola de dormir. Ela beijou a boca que melhor a beijava e se deitou para dormir. Com os olhos fechados e voz de menina pediu para ele lhe contar uma história de ninas, que ela queria adormecer com a voz dele em si. Ele deixou os tênis desamarrados nos pés e disse que nào tinha nada na cabeça além de sono. Mentiroso, você escreve tão bem, conte uma história pra mim. De fato ela sabia argumentar com o seu rapaz, que vivia de escrever, fazia traduções como seu ofício mas arriscava também seus passos, volta e meia publicados por aí. Manhosa que só, refez o pedido com voz de bichano, cutucando o ego dele com um dos pés.

Olhou para ela, o quarto na penumbra, seus pés desalinhados, as mãos em concha junto dos olhos cerrados e começou a falar, seria uma história de marinheiro, teria o mar, teria o sol, teria um navio, teria um capitão e sua filha. Nas primeiras frases ela perguntou, sugeriu, chegou mesmo a sorrir e então adormeceu junto com a filha do capitão, serena como a lua que minguava no céu. Ele cantou seu ninar até o final feliz para se dar conta de lágrimas no próprio rosto. Nunca havia visto nada tão bonito, a sua garota sonhava com suas palavras, navegava em mares tranqüilos. Meu Deus, eu amo essa mulher, ele disse mais para si do que para o Chefe. E ficou ali, respirando leve, observando o sono amado, sem mais palavras que fossem possíveis porque sabia que aquele instante seria eterno. E assim foi, até que ele amarrou seus tênis e tomou o caminho de casa, com um pedaço da eternidade em cada passo.