Era o dia mais frio do ano. Atravessava as rua veloz mas se demorava a olhar para as revistas e jornais em bancas, vira-latas que dormiam em praças, namorados que beijavam em pontos de ônibus. Estudava as menores cores talvez na esperança de absorvê-las para si e então voltava a vasculhar a cidade que anoitecia. Qualquer um seria capaz de perceber, mesmo estando de longe, que ela apenas caminhava sem ter um destino certo, e ninguém decerto poderia adivinhar que pela mesma razão ela apressou seus passos num certo instante. Esta cidade é grande demais para passinhos de menina moça, ela se afundou no casaco e acelerou.
Bateu pernas por mais uns metros até enxergar os meninos rachando uma pelada no terreno perto da escola. Entre xingos e pontapés foi reconhecendo o Peu, o Du, o Careca, o Amarelo. O frio começara a garoar de fininho, um quase nada que cortava a pele. Ela achava graça em ver como os guris levavam a sério o jogo e suas regras, sonhando-se mutuamente craques invencíveis. Estranhou o Deco, logo ele que gostava tanto de bola, não estar ali no rachão no meio das divididas e dos gritos.
"O Deco, onde estará esse menino?" pensou em voz alta para si mesma, enquanto a mão esquerda apertava o envelope de papel no bolso do casaco. Viu que as nuvens, bem como as horas do dia, iam já pesadas e escuras. Tratou de direcionar seus passos apressados e mesmo assim vacilantes para casa, o coração quase lhe faltava quando pensava no envelope que sua amiga Val havia entregue a ela pouco antes de bater o sinal da última aula do dia. O Deco pediu pra te dar, Val sorria, depois me conta o que é, Val brilhava. Oras, era um envelope de carta branco, como qualquer outro, escrito "Lu". Não quis abrir na escola, faltou coragem para abrir no ônibus de volta para casa, aquela gente toda olhando. Almoçou com a mãe em casa e não disse nada. Saiu para o curso de francês, mas ficou andando pela cidade, a imaginação tentando adivinhar o estaria escrito no papel dentro dele.
No portão de casa, respirou fundo e tirou do bolso aquela taquicardia. Abriu, as letras tremidas feito ela. Deco não era bonito que nem o Peu ou o Amarelo, mas não era feio e era bom de bola. A Val mesmo havia dito uma vez que já tinha visto o Deco beijar na boca, será que tinha sido de língua? As letras tremidas ficaram tão bonitas no papel, como ele descobriu que eu adoro essa música? Deco, ao que parece, era malandro e não dormia no ponto. Lu ficou no portão, um sorriso do tamanho do mundo, lendo e relendo o bilhete embaixo da garoa que virava chuva e regava aquele primeiro amor.