O Evangelho segundo Mel Gibson ou A arte de Deus é para qualquer um?
Em comentário ao blog da amiga Renata Férrer (ótima moça, com um futuro jornalístico brilhante à espera, apesar de suas tantas dúvidas), eu disse que o último sujeito que conseguiu aliar arte e religião com respeito e propriedade havia sido o Caravaggio. Um italiano destemperado e encrenqueiro, Caravaggio era franco e queria retratar a verdade da forma que poderia ser vista. Muitas vezes ele foi acusado de querer chocar simplesmente. Poderia ser cruel para muitos cristãos ver o dedo de São Tomé na ferida de Cristo. A incredulidade, para Caravaggio, representava algo natural, de pessoas humildes com as testas enrugadas pela surpresa. O pintor morreu em 1610.
Eu não vi "A Paixão de Cristo" e nem pretendo ver. Gosto dos filmes do Mel Gibson (ótimo rapaz, com uma bela carreira de diretor, vide "Homem Sem Face" e "Coração Valente"), mas não gosto de perder meu tempo com besteiras. E, não, não me incomodam as possíveis alusões anti-semitas do filme, afinal todos sabem que foram os judeus, mesmo, que mataram tanto o Homem, quanto o xeque Ahmed Yassim. O problema de "A Paixão de Cristo" é a violência. Minha visão parte de uma percepção coletiva, eu sei, mas não preciso comer jiló para saber que é amargo. Portanto, qualidades e defeitos deixados de lado, sei que o filme apela para cenas de violência e truques dramáticos.
Para explicar tanto sangue, Mel afirma que apenas transpôs para o negativo o que foi escrito com a ajuda do Espírito Santo. Leiam as escrituras, responde o diretor. Era mais ou menos a mesma coisa que alegava Caravaggio ("Disse depois a Tomé: "Põe teu dedo aqui e vê minhas mãos! Estende tua mão e põe-na no meu lado e não sejas incrédulo, mas crê!"" - João, 20, 27).
A diferença está justamente no objetivo dos dois, Mel e Caravaggio. Em "A História da Arte", Gombrich argumenta que nada existe realmente ao que se possa dar o nome de arte. Restam apenas os artistas, diz. Considerando, então, a arte apenas como o fruto de um trabalho de artistas, sem uma definição magnânima, Mel peca a privar o espectador daquilo que mais deveria suscitar a repulsa à obra de Caravaggio. O pintor mostrava a humanidade de santos, raramente usando auréolas na cabeça e sem ar de mártires e super homens. Ele sabia, e como sabia, mostrar a arrogância do anjo, a dúvida penitente de Abraão e o desespero de Isaac.
Já Mel, no filme que eu não vi, relega um papel secundário aos personagens, aqueles que realmente fazem dessa a história mais vendida de todos os tempos. Se Jesus foi crucificado, Judas se enforcou e Pilatos lavou as mãos, isso pouco importa. O que eles representam, isso sim, faz a diferença - tanto para os melhores artistas, quanto para a maioria das religiões.
Desta forma, fazer um filme todo falado em aramaico é deixar bem claro que o cenário é mais importante que os personagens. E, no caso da história da Paixão de Cristo, a única coisa que realmente importa é O personagem. Fazer um filme sobre Ele deixando-O em segundo plano é o maior pecado de Mel Gibson e que ele arda no Inferno por isso.